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O 25 de Abril visto pelos olhos de Natércia Salgueiro Maia

Fernando Salgueiro Maia e Natércia Salgueiro Maia num desenho da sua neta mais velha, Daniela © Daniela Salgueiro Maia

Natércia Salgueiro Maia viu sair de Santarém a coluna militar em que seguia o marido, na madrugada de 24 para 25 de Abril, pelos “buraquinhos do estore”, para não atrair a atenção da PIDE.

No prédio onde vivia com Fernando Salgueiro Maia, em 1974, moravam mais dois capitães, pelo que a presença de um agente da polícia política era constante na rua. 

“Lá no prédio vivia mais um capitão que também saiu, que ocupou o Banco de Portugal, e havia outro, mas que por acaso nessa altura estava em Angola. E então, havia sempre um PIDE lá na rua e, portanto eu não subi o estore, espreitei pelos buraquinhos para ver a avenida”, contou Natércia Salgueiro Maia à Lusa que aceitou receber para uma conversa descontraída.

Natércia Salgueiro Maia, que não gosta de dar entrevistas, aceitou receber a Lusa na casa que construiu com o capitão de abril nos arredores de Santarém para reconstituir a forma como viveu os dias da revolução, dos quais guarda muitas memórias, recortes de jornais, revistas, livros, retratos. O sótão, forrado a estantes, é o local de eleição para guardar “as coisas do 25 de Abril”.

Com 80 anos impercetíveis, Natércia guarda inúmeras memórias do tempo que viveu com Fernando José Salgueiro Maia, da guerra colonial ao 25 de Abril, entre muitas outras. Em casa, ainda conserva lenços que foram oferecidos ao então capitão pelos civis que saíram à rua em apoio aos militares no dia em que se cumpriu o golpe de Estado que abriu caminho para a democracia: “Ele tinha sinusite. Naquela altura não se usavam lenços de papel, os populares foram comprar lenços e deram-lhe, porque ele já não devia ter e precisava muito”.

Fernando Salgueiro Maia falava pouco de trabalho e de política em casa, exceto em reuniões de amigos chegados ou familiares próximos, em que era comum defender – “Isto tem de mudar”.

“Já tinha havido tentativas, não é? Só realmente as Forças Armadas ou o Exército é que podiam, talvez, dar a volta à situação (…) De resto, eu sabia que havia de acontecer qualquer coisa”, assumiu Natércia.

“No dia 23, ele recebeu um telefonema e foi encontrar-se com um militar, acho eu, com certeza que era um militar, e disse-me ´Se calhar é hoje´. Depois veio para casa. Não era ainda naquele dia”, sorriu. 

Natércia Salgueiro Maia estava a par das reuniões do marido. Por vezes acompanhava-o até Lisboa para dar uma volta na capital, enquanto o capitão se reunia com outros militares envolvidos no golpe de Estado que derrubou a ditadura há 50 anos.

No dia 24 de abril de 1974, Salgueiro Maia avisara a mulher para ficar atenta às músicas que, na rádio, serviriam de senha para a revolução (E Depois do Adeus e Grândola, vila morena). E disse-lhe – “Pode ser hoje”.

“Depois quando ouvi, aguentei até vê-los passar”, recordou Natércia: “Devo ter-lhe desejado boa sorte, aquilo podia correr mal!”.

Apesar de desconhecer os pormenores do plano, sabia que o marido seguia naquela coluna que saiu de Santarém rumo a Lisboa, até porque era ele “o responsável pelos carros de combate”. 

Reparou também que Salgueiro Maia, que apenas fumava em ocasiões especiais, colocara cigarrilhas no saco, antes de sair de casa para a Escola Prática, no dia 24 de abril. “Aquilo já era ele a pensar em comemorar. Não é que me tivesse dito, as coisas são óbvias, tínhamos esta forma de estar, não era preciso estar a dizer tudo”, afirmou.

Naquela noite, Natércia, professora de matemática, viveu entre o segredo da revolução e a atenção devida a uma visita que recebeu em casa e que nada sabia, mas que estranhava o comportamento da anfitriã, conforme lhe confessou mais tarde, uma amiga que encontrara na rua e que convidara a subir, por cortesia.

Natércia dividia-se entre a sala, onde estava a colega, e a emissão do rádio, na cozinha. “Era só uma paredezinha, portanto eu andava sempre assim” [à escuta], simulou. 

O telefone tocava e Natércia Salgueiro Maia não atendia, com receio de que fosse alguém a fazer perguntas às quais não poderia responder, o que – num tempo em que imperava a figura do chefe de família – levou a amiga a pensar que talvez o marido não a deixasse atender telefonemas. 

“Já tinha havido o 16 de março [sublevação de militares das Caldas da Rainha que foi abortada], em que me ligaram para casa a perguntar o que se passava com a Escola Prática, que as forças do Norte já vinham a caminho. Eu disse que não sabia, que ligassem para a Escola Prática, quem era eu para dizer o que se passava?”, lembrou, classificando o episódio como “uma barraca”.

Com a revolução em curso, e depois do esforço para nada deixar transparecer, Natércia adormeceu momentaneamente e acordou, em sobressalto, com o comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), justamente na parte final em que se fazia um apelo aos médicos para se dirigirem aos hospitais. “Pensei: está a correr mal. Só depois é que percebi que era uma medida preventiva”.

“Nessas situações mantenho-me sempre muito calma e serena, pelo menos aparentemente, só que interiormente deve haver um grande desgaste. De maneira que encostei-me um bocadinho e passei pelas brasas [risos]. Até tenho vergonha de dizer isto, pode ser mal interpretado, mas foi o que aconteceu”, admitiu, reconhecendo que acordou “escandalizada” com a sua situação.

Tentou fazer a vida normal, tal como havia conversado com o marido e dirigiu-se ao liceu, onde dava aulas. “Nem chegamos a entrar, o senhor reitor disse que tinha recebido ordens para fechar a escola”, contou.

Ao regressar a casa, ligou a televisão que apenas transmitia música. “Depois, quando apareceu a imagem já o meu marido estava no Carmo. E lembro-me de ter dito: Tinha de ser!”, precisou, ao evocar a personalidade de Salgueiro Maia: “Era uma pessoa cheia de energia, decidido. Para ele nunca havia obstáculos, tentava sempre encontrar uma solução, tirando a doença. Era o que ele dizia, a única coisa que não conseguiu resolver foi a doença”.

Foi à distância que aguardou pelo resultado do desempenho de Salgueiro Maia e dos outros militares. “Aquele bocadinho também foi muito preocupante, demorou algum tempo até a situação ser resolvida no Carmo. Podia não correr bem”, admitiu.

Conseguida a rendição do regime, Salgueiro Maia ficou em Lisboa mais uns dias. Reencontraram-se no dia 26 de abril, junto ao Regimento de Cavalaria 7, na Ajuda, onde Natércia se deslocou com uma amiga, também casada com um militar. “Abraçamo-nos. Lembro-me que passou um camionista e que o camionista também estava muito feliz!”, recordou.

Depois da revolução, Salgueiro Maia regressou a Santarém, mas o papel desempenhado na queda do regime faria com que a população o procurasse junto da instituição militar para pedir ajuda nas mais diversas situações.

Nas aldeias, os militares fizeram fontes, arranjaram terrenos para campos de futebol e atenderam a outras solicitações do povo, que procurava por Salgueiro Maia na Escola Prática de Cavalaria de Santarém.

Ao folhear um álbum onde Salgueiro Maia guardava recortes de jornais, a mulher, Natércia, encontrou, inadvertidamente, um postal com uma ameaça: “Ainda hão de aparecer muitas cabeças de capitães penduradas nos candeeiros’.

Natércia Salgueiro Maia estava a ver o álbum que uma amiga oferecera ao casal quando reparou no postal guardado por trás de um recorte.

“Ele escondeu o postal para que eu não visse, mas chamou-me a atenção o postal”, descreveu Natércia Salgueiro Maia, ao recordar o período em que vivia com “a PIDE [polícia política] à porta de casa” e receava pela vida do casal, ao virar da esquina.

“Tinha algum receio. Numa altura em que íamos ainda à missa, quando dávamos a curva, tinha receio que estivesse alguém à nossa espera”, confessou à Lusa.

Quando acompanhava Salgueiro Maia a Lisboa, onde o então capitão se reunia com outros elementos que constituíram o Movimento das Forças Armadas (MFA), Natércia por vezes fechava os olhos no carro, vencida pelo cansaço: “Quando abria [os olhos] parecia que via logo coisas à frente do carro, com algum receio de que nos fizessem algum mal. Isso lembro-me!”.

Lembra-se também do período conturbado a seguir ao 25 de Abril e da preocupação de Salgueiro Maia com o futuro do país. “Em especial, em 1975, foi um ano em que ele andou muito preocupado e algum nervosismo pela maneira como as coisas estavam a correr. Foi um ano um bocadinho difícil”, admitiu.

“Chegamos a estar no Algarve e ele e os colegas vieram para Lisboa, porque estávamos à beira de uma guerra civil. No 25 de Abril ele fez tudo para que as coisas não descambassem”, acrescentou Natércia Salgueiro Maia.

Depois do 25 de Abril, prosseguiram as reuniões em Lisboa, já em 75, da comissão coordenadora do MFA, que eram “mais tensas”, admitiu. 

Ao percorrer as memórias do Período Revolucionário em Curso (PREC), Natércia apontou para um tamborete – na época forrado com uma pele que Salgueiro Maia trouxera da Guiné -, onde o capitão estava sentado quando assistiu, estupefacto, à demissão do general Spínola do cargo de Presidente da República em 30 de setembro de 1974.

“Estava sentado naquilo a ouvir o Spínola e depois ficou assim… o fulano demitiu-se e ele ficou preocupado. Não estava à espera”, disse.

O tamborete, hoje com um revestimento mais contemporâneo, continua na sala em que Natércia Salgueiro Maia recebeu a Lusa, nos arredores de Santarém.

António de Spínola acabou por fugir para Espanha, antes de se exilar no Brasil, em 1975, depois de se envolver numa tentativa de golpe de direita.

A democracia pluralista com que Salgueiro Maia sonhava consolidou-se, ultrapassado o verão quente de 1975 e com a aprovação da Constituição da República Portuguesa, em 1976, atualmente em vigor.

Portugal celebra este ano os 50 anos da revolução dos cravos.

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