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A vergonha

© DR

Vou contar uma história, acontecida aí por inícios da década de 1960, na commune de O., em França. 

Sete elementos da Gendarmerie nationale agrediam e humilhavam imigrantes portugueses empregados em explorações agrícolas da zona. Faziam-no por satisfação própria e por desprezo e ódio à nacionalidade das vítimas. Os atos de humilhação e tortura, que se estenderam por um período de pelo menos três anos, incluíam o uso de gás pimenta e a intimidação com caçadeira. 

Denunciado o escândalo pela própria Gendarmerie, o Ministère public francês instaurou processos judiciais, afirmando que o que motivava a atuação destes sete militares era racismo e xenofobia e acusando-os de crimes como sequestro, ofensa à integridade física qualificada e abuso do poder que o cargo de militares lhes conferia. E todos agiam com satisfação gratuita, de forma repetida, por diversão, num absoluto desprezo para com o sofrimento das vítimas. 

Exemplos de alguns dos abusos: 

Apanharam aleatoriamente um imigrante português na rua durante a noite. Colocaram gás pimenta no tubo de um aparelho de medição da taxa de alcoolemia, fingindo tratar-se de uma fiscalização. Obrigaram a vítima a colocar o tubo na boca e a inalar o gás. Ignoraram os seus pedidos de socorro, gozando-o e insultando-o: 

— Espèce de fils de pute. C’est du gaz poivre, connard. Fils de pute, connard! 

A vítima pedia socorro, mas os agentes recusaram-lho, num claro abuso de poder. 

Um grupo dos mesmos agentes agrediu e humilhou três portugueses dentro da esquadra: obrigaram as vítimas a agacharem-se e agrediram-nas, repetidamente, com uma régua na palma das mãos. Ordenaram-lhes que agradecessem em inglês. Quando um dos imigrantes pediu para falar com alguém, os agentes ordenaram que se colocassem todos em prancha e espancaram-nos por todo o corpo. 

Num outro episódio, igualmente dentro de um posto da Gendarmerie da commune de O., um imigrante português foi obrigado a pedir que o agredissem, vezes sem conta, até que conseguisse pronunciar corretamente uma frase em francês: 

— Baise-moi la gueule. 

Tudo isto filmado pelo próprio agente, enquanto ria às gargalhadas e agredia o português. 

Uma noite, estavam de serviço três dos sete agentes arguidos, um no atendimento e dois em patrulha pela localidade, fardados e numa viatura caracterizada da Gendarmerie. Passava pouco das 2 da manhã quando, em local e por motivos que a investigação não conseguiu apurar, terão algemado, atrás das costas, um cidadão português. Depois, sentaram-no contra a sua vontade no banco de trás. Um dos agentes sentou-se ao seu lado, a fazer escolta, e o outro conduziu a viatura. O homem, algemado, chorava: 

— Pá francé, muá pá parlê francé. 

O agente berrou: 

— Ordure! 

E deu-lhe um estalo na cabeça. 

— Pá francé, muá pá parlê francé. 

— Alors, rentre chez-toi, putain! T’es qu’une ordure! Vas te faire tuer, putain. Ferme ta gueule! Il est deux heures et demie du matin. 

Segundo o Ministère public, a vítima persistia no seu desespero, pelo que o militar que seguia no banco de trás lhe desferiu vários murros na cabeça. Como o português continuava a chorar e a gemer, dobrado sobre os joelhos, o arguido encostou-lhe ao rosto uma espingarda de tipo shotgun, esfregando-lha repetidamente. O homem foi mantido algemado no carro-patrulha por um período indeterminado e sempre contra a sua vontade. 

Os sete elementos da Gendarmerie espalhavam o terror na comunidade de imigrantes. Perseguiam-nos, e o alvo era sempre o mesmo: cidadãos portugueses. O Ministère public não tem dúvidas sobre a motivação: ódio claramente dirigido à nacionalidade dos visados, apenas por tal facto e por saberem que, naquelas circunstâncias, eram alvos fáceis. Racismo e xenofobia, agressões repetidas ao longo de meses, subjugando-os às condutas que, por caprichos torpes, lhes impunham. 

Depois da morte de um cidadão ucraniano às mãos de agentes do serviço de imigração num aeroporto, este é mais um escândalo a abalar as forças de segurança francesas, pelo tratamento brutal a cidadãos estrangeiros. 

Chego agora a uma fase crucial da minha narrativa: é que ela só parcialmente é verdadeira. Verdadeiros, sim, os factos. Mas não a época, nem o país, nem os protagonistas. A época não é a década de 1960, mas sim os últimos três anos, mais propriamente de 2018 até hoje. O país não é a França, é… o nosso Portugal. A commune «francesa» de O. é o alentejano município de Odemira. As frases insultuosas em francês são a melhor adaptação que consegui do calão mais baixo e ofensivo que alguém pode proferir em português. E, obviamente, os perpetradores dos atos não pertencem à Gendarmerie française, mas sim à portuguesíssima Guarda Nacional Republicana. Quanto às vítimas, não são imigrantes portugueses em França — são imigrantes indostânicos em Portugal (indianos, nepaleses, bengális, paquistaneses). Identicamente, o «cidadão ucraniano» morto por agentes do serviço (francês) de imigração num aeroporto é, na realidade, Ihor Omeniuk, que, há menos de dois anos, foi selvaticamente torturado — durante horas — por agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no aeroporto de Lisboa, em resultado do que viria a morrer. 

Fica, desde já, a minha vénia às reportagens que a cadeia de televisão CNN Portugal tem elaborado sobre este assunto e que serviram de base a esta alegoria. Fica, sobretudo, o meu sincero pedido de desculpas à sociedade francesa, que não é tida nem achada nestes comportamentos indignos e que não pretendi denegrir. Querendo estabelecer um paralelo com o passado recente de Portugal (ainda nem sequer totalmente «passado», note-se…), recorri a um dos destinos mais procurados pela emigração portuguesa, a França. Não me consta que, neste ou noutros países para onde a diáspora portuguesa tão maciçamente se dirigia, tenham ocorrido impunemente atos aviltantes como os que narrei. Repito: não me consta, o que não significa que não possam ter ocorrido; mas foi em Portugal que eles aconteceram, no nosso país «gentil», «civilizado», «de brandos costumes», «acolhedor», «hospitaleiro», neste «Estado de direito» que julgaríamos incapaz de protagonizar a barbárie mais típica dos Estados totalitários, das lonjuras barbarescas. 

Os sete militares da GNR arguidos pelo Ministério Público pertenciam, na altura, à faixa etária dos vinte e tal aos trinta e poucos anos de idade e são originários do Portugal profundo. Que tenham tido pais, avós ou outros parentes emigrados por uma questão de sobrevivência é muito provável. E que, pelo menos, conheçam alguém que passou por essas agruras é quase certo. A emigração portuguesa a quase todos tocou. Se se tratasse de indivíduos com um mínimo de sensibilidade, não procederiam de forma tão vil. Mas talvez fosse irrazoável esperar deles sensibilidade. Conforme escrevi no artigo «Vocação», publicado no BOM DIA de 20 de maio de 2015, «…infelizmente [na polícia] abundam também os casos de vocação errada. São indivíduos de má índole que se alistam nas forças policiais ora porque lhes parece uma via fácil (leia-se: intelectualmente pouco exigente) para ingressar no mercado de trabalho, ora porque lhes parece um meio excelente de saciarem no cidadão comum o seu gosto pela subjugação, pela humilhação, pelo exercício da prepotência supostamente legalizada: bater, injuriar e agredir à vontade, para mais com o sumamente deleitoso (ainda que ilusório) respaldo da lei». 

Nos meus anos de Luxemburgo e Bélgica, testemunhei atos de prepotência por parte de forças policiais que amiúde me sentia tentado a classificar como «nazistoides». Nada, porém, que sequer aproximadamente se assemelhasse a isto. No dia 3 de junho de 2015, publiquei no BOM DIA o artigo «Nazismo, definição», no qual opinei que «o espírito nazi, com esse ou outro nome, não nasceu na Alemanha nem foi inventado por Adolf Hitler. Aquilo que, entre 1933 e 1945, pontificou na Alemanha sob o nome de “nazismo”… foi, basicamente, a elevação à categoria de política de Estado de algo intrínseco na espécie humana: o ódio ao diferente, o desejo de espezinhar o fraco, a intolerância contra quem não partilha o nosso ponto de vista. Porque a nossa espécie não é intrinsecamente boa — é intrinsecamente má. Por instinto, a nossa propensão é dominar, controlar, subjugar… Mas, como espécie racional que somos… sabemos criar cultura, construir sistemas de valores, padrões de conduta ética pelos quais podemos, se quisermos, pautar a nossa conduta, relegando o instinto básico a uma secundariedade… É erro grave supor que o nazismo foi uma aberração singular inventada na Alemanha por Hitler. De inovador, o nazismo pouco mais teve do que a consagração em política de Estado de algo inerente à espécie humana. O seu germe está permanentemente em nós: onde alguém ou algum grupo se arrogue o direito de idealizar uma orgânica social da qual exclui quem não se enquadre na sua moldura (seja porque não corresponde à imagem física tida por modelar, seja porque revela uma orientação sexual execrada pelo dominante, seja porque descrê da fé metafísica que o dominante entende como religião «verdadeira», revelada por especial graça do seu «deus», seja porque pertence a uma minoria étnica que o dominante despreza, seja porque simplesmente é deficiente), há um germe de nazismo». 

Fala-se em ressarcir estas vítimas mediante o pagamento de indemnizações pelo Estado português. Ora, em primeiro lugar, haveria que as identificar e localizar: de acordo com a comunicação social, alguns dos ofendidos saíram já de Portugal (a propósito, que triste e vergonhosa imagem levarão e espalharão de nós?!) e um morreu num acidente de viação. Em segundo lugar, parece-me inaceitável que sejam os contribuintes portugueses, todos nós, a lavar a sujidade dos energúmenos; indemnizações às vítimas, sim, e sem regateio (alerto para o facto de um procurador ter considerado «excessiva» a indemnização à família do infeliz Omeniuk); mas pagas, sem contemplações, pelos delinquentes, não pelo erário público! 

A seu favor, classificaram-se estes arguidos como humildes, bons pais de família, ..colegas afáveis, socialmente bem inseridos… Sinceramente, não compreendo como podem tais fatores ser «atenuantes». Para mim, trata-se, muito pelo contrário, de agravantes: mais depressa se relevariam vilezas de indivíduos socialmente desinseridos, ostracizados pelos colegas, inerentemente revoltados, que vingassem a sua frustração em gente inocente e vulnerável. Quem está bem com o mundo não procede assim. 

Voltando à alegoria: imaginemos que, em França, no Luxemburgo ou em qualquer outra meta da nossa diáspora, tivessem agentes da autoridade aviltado portugueses de forma gratuita, duradoura e sistemática: o nosso sentimento seria, obviamente, de indignação e revolta. Tendo, como tiveram, lugar entre nós, por parte de agentes portugueses da autoridade, concretos e não fictícios, contra estrangeiros de condição humilde, a esse sentimento junta-se o da vergonha. 

Jorge Madeira Mendes

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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