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A racialização politicamente correta

No âmbito da campanha para as últimas eleições presidenciais, coube a João Adelino Faria, jornalista da Rádio e Televisão de Portugal, entrevistar André Ventura. O traço mais notório foi a agressividade do entrevistador, que parecia querer fazer jus ao vulgar dito de que «os portugueses não conversam — interrompem-se». Dir-se-ia querer competir com Miguel Sousa Tavares na afanosa busca do troféu «corajoso-jornalista-que-logrou-arrumar-o-líder-de-um-partido-de-extrema-direita». Enfim, num Estado de direito, seria justo deixar qualquer político explicar o projeto que preconiza para o seu país, remetendo o entrevistador as suas opiniões pessoais à esfera íntima. Note-se que, pela mesma altura, João Adelino Faria se mostrou visivelmente mais condescendente e até respeitoso para com Marisa Matias, a candidata do Bloco de Esquerda. Mas não é exatamente este o tema da minha crónica.

Em dado momento, procurando rebater a posição crítica do dirigente do Chega! em relação aos comportamentos de determinados grupos étnicos, João Adelino Faria atirou-lhe que somos todos membros de uma só raça, a «humana». Claro que, cientificamente, isto é um disparate, porquanto não existe nenhuma «raça humana», mas sim a «espécie humana». Trata-se, provavelmente, de mais uma das traduções acríticas do inglês (the human race) que proliferam e são adotadas com zelo pelos promotores do politicamente correto. Em termos biológicos, a humanidade não é uma raça, é uma espécie — para ser mais exato, a espécie Homo sapiens. Todos os seres humanos atuais pertencem a esta espécie, uma vez que, independentemente das suas diferenças fenotípicas, podem procriar entre si, produzindo descendentes férteis (esta é a melhor definição de «espécie»: quaisquer seres vivos que, por muito diferentes na aparência, possam produzir descendência fértil pertencem à mesma espécie).

Por «raças» podemos designar as variantes dentro da espécie. Mas, quem achar que o termo «raça» se tornou socialmente melindroso, pode eliminá-lo (na aceção de «variante étnica humana»). Não pode é transferi-lo erradamente para outras aceções, sob pena de calcar a precisão científica. Na melhor das hipóteses, é defensável o argumento de que a raça não tem o suposto significado de outrora — mas não é defensável chamar «raça» à categoria taxonómica «espécie», nem afirmar que não existem raças. Também existem sexos distintos (o masculino e o feminino, pelo menos), embora não seja lícito discriminar em função deles (como outrora se fez). E o mesmo, mutatis mutandis, em relação às categorias etárias, que ninguém pode afirmar não existirem, apesar de ser errado aproveitá-las para fins discriminatórios.

João Adelino Faria é apenas um de muitos obcecados pelo politicamente correto que proliferam nos nossos meios de comunicação social. Não vou, porém, atacá-lo pela ignorância que revela. O que ressalta da «lição» que julgou dar a André Ventura é o anátema à racialização praticada por um branco. O novel conceito de «racialização», que se espalhou, já se vê, a partir dos Estados Unidos, berço do politicamente correto, consiste em categorizar os indivíduos segundo as suas caraterísticas étnicas: nasceram, assim, as denominações White, Caucasian, Black, Afro-American, Asian, Hispanic, Latino e por aí fora. O curioso na racialização é que ela só é anátema se partir de um White ou Caucasian. Imagine-se um qualquer americano a proclamar orgulhosamente a sua qualidade de White: acusá-lo-iam de «supremacista branco», «racista», «promotor de hate speech», etc. Reivindiquem idêntica qualidade indivíduos de outras «etnias», torna-se politicamente correta, visto, como bem sabemos, ser legítimo defender a «diversidade» e a «identidade das minorias».

Está ainda fresca na nossa memória a morte, em maio do ano passado, de George Floyd, cidadão negro americano asfixiado até à morte por um polícia (perante a cúmplice passividade de outros agentes), com base na suspeita (que se viria a revelar infundada) de ter usado uma nota falsa numa pequena compra. Quanto mais o homem protestava que não estava a resistir e implorava que não lhe fizessem mal, mais se encarniçava a fúria insana daqueles «agentes da lei e da ordem», inclusivamente quando, algemado, atirado para o chão e com o joelho do agente Derek Chauvin a comprimir-lhe o pescoço, arquejava «I can’t breathe» («não consigo respirar»), as últimas palavras que proferiu.

A pretexto dessa morte, Joacine Katar Moreira, guineense por nascimento, portuguesa por naturalização e deputada à Assembleia da República (inicialmente pelo Livre, mais tarde como independente, após o partido lhe ter retirado a sua confiança), participou numa manifestação junto ao icónico arco da rua Augusta, em Lisboa, durante a qual disse coisas como esta: «O racismo não é problema dos negros e das negras. Não éramos nós que devíamos estar aqui hoje — eram os brancos e as brancas, porque quem comete racismo são eles e são elas».

Dificilmente alguém com consciência moral mínima deixará de sentir uma surda e dolorosa indignação perante as imagens do assassinato de George Floyd, pelo que eu não creio que a sociedade portuguesa precise da virulência racista de Joacine Katar Moreira como orientação. Se o que motiva esta gente fosse uma genuína sede de justiça, e não uma lógica de base racial, insurgir-se-iam com igual veemência contra o assassinato do ucraniano Ihor Omeniuk, às mãos de agentes da autoridade… em território português, e não nos remotos Estados Unidos da América, país pelo qual os portugueses não têm responsabilidades diretas. Obviamente, ainda menos se insurgiriam contra o assassinato do jovem Pedro Fonseca às mãos do guineense Serifo Baldé, com a cumplicidade dos igualmente guineenses Tcherno Amadu e Bacari Djau, à saída de um estabelecimento de restauração em Lisboa.

Por sua vez, Mamadou Ba, senegalês igualmente naturalizado português, autoproclamado militante antirracista, dirigente da organização SOS Racismo e antigo assessor do Bloco de Esquerda até este partido lhe ter retirado a sua confiança, referiu-se um dia à Polícia de Segurança Pública como «a bosta da bófia» e declarou também: «Nós temos é que matar o homem branco». Mais tarde, afiançou no canal de televisão TVI 24 que falara «metaforicamente». À parte a retirada de confiança política a estas duas pessoas pelo Livre e pelo BE, respetivamente, não houve uma só cabeça bem-pensante com a hombridade de denunciar este atiçamento da perturbação social, estes inegáveis discursos de ódio que se centram em torno do antagonismo racial. Imagine-se um «racializado branco» a dizer, em público, algo simétrico, ainda que «metaforicamente»…

Há algumas semanas, num programa da série O último apaga a luz, em que se debatia a pertinência da escolha de Pedro Adão e Silva, militante do Partido Socialista, para comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a escritora Inês Pedrosa opinou que o ideal teria sido o governo escolher para comissário uma mulher… e «africana».

Compreendo que Inês Pedrosa defenda a promoção feminina, pois é inegável o papel subalterno que tradicionalmente tem cabido à mulher, mas acrescento, à parte, que me oponho com firmeza a escolhas baseadas na pretensa «discriminação positiva». O importante é eliminar barreiras propositadas, o importante é facilitar a ascensão pelo mérito e pela competência demonstrados. Pôr uma mulher em determinado cargo apenas porque se considera que as mulheres são um grupo social habitualmente discriminado não é caminho justo. A pertença à categoria «mulher» deveria, quando muito, ser o critério derradeiro, aquele que, ultrapassados todos os outros a montante, servisse para um eventual «desempate» entre candidatos. Mas continuemos.

Por um lado, Inês Pedrosa envereda também pela racialização politicamente correta: louvor a quem empurrar para a frente a pertença étnica «africana» (anátema, presume-se, a quem referir a «europeia»). Por outro, o que há de mais desconcertante neste preconizar da africanização de determinados cargos é que, sem bem disso se aperceberem, os politicamente corretos estão a julgar de modo negativo o 25 de Abril que pretendem enaltecer. Se existe neste momento uma comunidade «africana» em Portugal, a origem do fenómeno radica, precisamente, no infortúnio que a descolonização concretizada após a revolução de 25 de abril de 1974 constituiu para os povos das ex-colónias portuguesas de África (um dos principais mentores do processo, o insuspeitíssimo Ernesto Melo Antunes, chamou-lhe «tragédia»). Ao contrário do que se dizia e se continua a propalar, a migração em abundantes levas para o país do antigo colonizador aponta mais no sentido desse infortúnio do que no de uma libertação.

No âmbito das próximas eleições autárquicas, Beatriz Gomes Dias é proposta pelo Bloco de Esquerda como candidata à Câmara Municipal de Lisboa. Natural do Senegal e descendente de guineenses, apresenta-se como «mulher» e como «negra». Sintomaticamente, não consta que as cabeças bem-pensantes se tenham apressado a lembrar-lhe que, «raças, só há uma, a humana». Mesmo que, do ponto de vista científico, estivessem a cometer uma calinada, dariam, pelo menos, provas de honestidade intelectual. O problema parece ser que, para alguns, a racialização não é, em si, condenável. Tudo depende de quem a praticar.

Jorge Madeira Mendes

 

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