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Luís Rainha: se as circunstâncias fossem outras, seria outra pessoa?

O que representa no contexto da sua obra o livro “Luz/Negra”?

Nem sei se posso falar da minha “obra”. Dois livros, incluindo um romance, editados sob pseudónimo, acrescendo, com o meu nome, dois livros de contos e agora este romance bicéfalo – estes últimos ao longo de 10 anos. Não serei nem prolixo nem muito aplicado na missão de construir essa tal “obra”.

Mas creio que há linhas de força a unir este conjunto de livros: a inquirição da realidade, algum gosto pelo fantástico, uns pós de sentido de humor e uma tendência progressiva para ir reduzindo a ganga em favor de ideias e prosas que se possam ler com proveito e gosto.

Não que tal implique que ande há uma década a escrever o mesmo livro, espero eu. Este romance é, em ambição e complexidade, algo a que eu só agora me consegui abalançar; talvez antes tivesse mais pressa, daí tender a seguir por formatos de ficção mais curtos.

Qual a ideia que esteve na base deste livro duplo (ou são dois livros num ou…)?

A pulsão autobiográfica é um tema do romance e até é uma das razões de ser do mesmo. Tudo começou por um esboço de enredo que me pareceu interessante; mas ao inventar o protagonista, dei comigo a hesitar entre duas, por assim dizer, versões de mim mesmo: por um lado um escritor dedicado mas quase esfomeado, por outro alguém para quem a escrita é apenas um passatempo escapista, um diletante próspero e algo indiferente às misérias que se vão espalhando em seu redor.

De repente, surgiu-me a saída para o dilema da escolha: apresentar duas narrativas em torno das mesmas mudanças da sociedade, com dois protagonistas que em tempos foram a mesma pessoa mas agora se encontram face às suas circunstâncias com posturas, bem-estar e atitudes bem diversas. E inseri nessas narrativas elementos disruptivos que são, afinal, alastramentos de cada um daqueles dois universos para o seu “gémeo” – e aqui torna-se mais evidente a deriva fantástica habitual na minha ficção.

A “ideia” será portanto a representação de alguns aspectos da natureza humana e da sua reacção à adversidade; e colocar a questão que me parece crucial neste romance: “se as minhas circunstâncias fossem outras, seria eu outra pessoa?”

Mas fiz por não me circunscrever à reflexão ensimesmada – vão mesmo acontecendo coisas, incluindo uma inexplicável erupção de violência que se repete nos dois livros, embora com desenlaces diferentes.

Guia de leitura para leitores confundidos: como este livro tem duas capas (e dois romances), qual devemos ler primeiro? Ou é indiferente?

É um romance com dois “lados”, como se fosse um disco de vinil. Um díptico com duas narrativas que são afinal dois relatos bem distintos em redor dos mesmos eventos, das mesmas pessoas. O livro apresenta-se no formato tête-bêche: uma metade invertida em relação à outra, duas capas igualmente válidas, contendo dois títulos (“Luz” e “Negra”, naturalmente). Não há um lado inicial, nem uma versão principal da história. Ignoro qual seja a ordem de leitura ideal; mas até pode ser que exista, ou que o livro possa ser lido em ziguezague, lendo um capítulo num lado e de seguida o seu homólogo do outro.

Alguns spoilers: os dois enredos partem de um protagonista, Abel. Ou melhor; de dois Abéis, um por “livro” – com cada um a apresentar, em relação ao seu “gémeo” da narrativa paralela, diferenças biográficas importantes, sobretudo motivadas pela presença (ou não) na sua vida de uma mulher decisiva. Um Abel separou-se dela, prosseguindo uma carreira de sucesso na publicidade. O outro permaneceu casado e foi pai. Por exigência dessa mulher crucial, deixou a sua profissão, tentando ganhar a vida como homem de letras – mas nem isso impediu que ela prosseguisse o seu trabalho científico longe de Portugal, deixando-o entregue a uma existência infeliz, no limiar da pobreza.

Esta agulha ferroviária no seu passado, assente sobre os carris de uma paixão impossível e dolorosa, acaba por ser a linha de clivagem que separa as duas vidas alternativas. Ambos mantêm um círculo de amigos que é sensivelmente o mesmo; ambos escrevem, embora obras antípodas. E foram moldando atitudes diversas, face a quase tudo – até as ficções que vão escrevendo reflectem essas disparidades.
Seguiremos assim duas histórias sempre complementares, que apenas ocasionalmente se cruzam.

Peripécias diferentes, desenlaces em nada parecidos. Duas narrativas com princípio, meio e fim, centradas num só casal (em ambas as variantes separado por uma distância considerável e por conflitos vários), com as mesmas personagens e o mesmo contexto: uma Lisboa atacada por uma depressão sem fim à vista e por uma violenta pandemia. Note-se que apesar da presença desta doença, e do destaque dado aos esforços para encontrar uma vacina, o romance foi terminado, na sua versão quase final, ainda em 2020, antes da eclosão da COVID.
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Luís Rainha
Luz/Negra
Língua Morta  15€

Mais informação em www.novoslivros.pt

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