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Historieta de Natal

Antigamente, o Natal chegava mais tarde. Para mim, com cinco ou seis anos, o Natal a sério começava já dezembro adentro, com os meus avós a decidirem à mesa do jantar onde iriam comprar o pinheiro e o bolo rei e quem seriam os convivas do almoço de dia 25.

Na Lisboa dos anos sessenta, o Saint Nicolas era um ilustre desconhecido e as grandes iluminações natalícias limitavam-se à baixa da cidade. As lojas, essas, desejosas de cativar a clientela, enfeitavam as montras com ramos de pinheiro, bolas de vidro, laços vermelhos e mechas de algodão fingindo a neve. Nas retrosarias, papelarias, pastelarias e farmácias ajeitavam-se pequenos presépios ingénuos num qualquer cantinho.

O Natal começava a fervilhar pelo segundo domingo do Advento. 

A Princesa de Alvalade, a loja de pronto a vestir preferida da minha avó, enchia-se de casacos de fazenda e a Bola de Neve, a referência do bairro no vestuário infantil, também – era no Natal que muitas famílias se decidiam a fazer uma despesa tão importante como comprar um casaco novo, quantas vezes a prestações como hoje os automóveis.

A Riviera, a mercearia fina do bairro, enchia-se de coisas maravilhosas, ameixas de Elvas, uvas passas de Málaga, bacalhau da Noruega, bolo de mel da Madeira, presunto de Chaves, leitão da Bairrada, faisão do Alentejo, queijo da Serra, pão de Mafra, pão de ló de Alfeizerão, ovos moles de Aveiro, camarão de Moçambique, foie gras de Paris, laranjas do Algarve, etc. Era como se o mundo e o arco-íris se juntassem naquela loja, frequentada por senhoras chiques e pelos pedintes que as afligiam, implorando um tostão para o pobrezinho. A avó comprava lá a abóbora coberta.

Nesse tempo de criança, eram três os momentos que me diziam que o Pai Natal estava quase, quase a escorregar chaminé abaixo: primeiro a chegada do pinheiro, depois a chegada da farinha e, por último, a escolha dos brinquedos.

O avô trazia sempre um pinheiro enorme, para grande alegria dos netos e arrelia da avó, a quem ele todos os anos prometia que, dessa vez, sim, o pinheiro seria mais maneirinho. «Já não tinham mais pequeno, Maria», desculpava-se ele piscando-nos o olho à socapa. Enfeitar e iluminar a árvore de Natal era uma festa. E todos os anos o presépio se enriquecia com uma nova figurinha escolhida pelos miúdos na loja Mimo, Artigos para o Lar.

Era também o avô que trazia a farinha de trigo da fábrica de moagem onde trabalhava nos Olivais. Muito branca e fina, a farinha destinava-se sobretudo ao cramique (ou kramiek), um pão delicioso com leite, ovos, manteiga

e uvas passas. Tradição da Bélgica, onde nascera o avô e receita da bisavó, a preparação do cramique era um ritual tão sagrado como a Missa do Galo. 

Ao pequeno almoço de dia 25 comiam-se grossas fatias de cramique com chocolate quente, o sonho de um ano inteiro.

A escolha dos brinquedos era o momento grave. É que o Pai Natal era muito cabeça no ar e capaz de grandes injustiças. Não passava por certas casas, apesar de nelas viverem meninos bem comportados. Como a Rosa, por exemplo, que tratava dos meninos do prédio ao lado. Um dia, calhou contar-nos que nunca tinha recebido nenhuma prenda de Natal. Chorei a noite inteira. «Bacalhau é uma moda de Lisboa, menina! Na nossa terra, pelo Natal, matava-se o porco e quem não tinha porco, comia couves e castanhas com um pedaço de broa… quando havia farinha para a fazer.»

Era assim: a avó chamáva-nos, mãos entrelaçadas atrás das costas e óculos na ponta do nariz, e dizia: «Meninos, chegou a hora de separar os brinquedos para darem.» Alegrava-me saber que uma menina pobre receberia, através de mim, a prenda que o Pai Natal, esquecido, não lhe iria deixar no sapatinho. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma dor fininha, uma espécie de pico no coração. Era difícil separar-me das minhas bonecas. Depois, vinha o avô inspecionar as nossas escolhas. «Brinquedos velhos ou estragados não vale, os pobres não são o lixo», dizia, severo. Depois, íamos com a avó à igreja levar os brinquedos e regressávamos a saltitar.

Talvez seja por isso que, a cada Natal, é como se a voz dos meus avós rasgasse a memória num murmúrio quase impercetível para me sussurrar ao ouvido: o que vais dar? De que te vais separar? O que vais levar contigo?

Escrevo estas linhas num comboio que ruma a Berlim, para celebrar o Natal com o meu filho, a minha nora e o meu neto. No ramalhete das tradições desta quadra festiva, o stollen veio juntar-se ao bolo-rei e ao cramique. Maravilhosa Europa! E já que cheguei até aqui, tudo farei para que o meu neto possa vir a guardar na memória alguns Natais passados com a avó.

Eduarda Macedo

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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