
(continuação de Há lobos na serra)
Tenho frio. A noite hoje vai gelar. Antes a noite gelada que o áspero temperamento da mãe! Pode ser que a ovelha apareça durante a noite. Se os lobos uivarem e ela ouvir o mé medroso do rebanho talvez o Benfica ladre para a orientar. Perdi-me por horas nestes pensamentos e a tiritar tanto de frio quanto de medo. Como estava longe de ser um herói, desses sempre vigorosos que vivem nas bandas desenhadas, acabei aninhado ao cão que amigavelmente me aceitou e aqueceu um pouco. Não sei como é que consegui, mas é um facto que adormeci e só acordei porque o Benfica começou a ladrar. Foi rápido e estrondoso o meu despertar. Ao longe ouvi vozes e, no meio do burburinho, identifiquei a do avô paterno.
O avô é um homem alto e de vozeirão forte a contrastar com um coração de passarinho protetor das crias. Sempre que aparecemos lá em casa nem pergunta nada, olha para nós, sorri e vai buscar uma fatia de pão com uma sardinha ou um pedaço de presunto. Se porventura não for ele a fazê-lo é a avó. Eu e a mana andamos sempre esfaimados sem hora marcada nem dia certo. A mãe sai de manhã, ainda sem sol nascente, e aparece à noite quando já estamos deitados. O nosso alimento é uma azáfama diária, subir a rua e pedir comida aos avós paternos, ficar em casa e esperar que os avós maternos partilhassem connosco as refeições. Conseguimos não passar fome, mas tínhamos uns corpinhos bem magrinhos pois no meio de tanta pobreza e tantas bocas para alimentar as nossas estavam em fila de espera.
Assim que o avô me viu, o seu rosto iluminou-se: Anda cá rapaz, anda cá! Pegou-me ao colo e levou-me assim, ladeira abaixo até à aldeia. Foi a viagem mais confortável da minha vida! Aninhado nos braços dele a ouvi-lo dizer-me uma vez e outra durante o percurso: Já passou rapaz, já passou! E isto não volta mais a acontecer, te digo eu! Quando chegámos, tínhamos uma receção de povo no largo da Eira à nossa espera. Percebi, entretanto, que aquela gente me considerava um milagre de uma santinha de quem eram todos muito devotos. Naquela altura do ano havia lobos esfaimados pela serra e ter escapado aos dentes deles tinha sido um feito dos memoráveis.
A mãe, quando me viu são e escorreito, fez logo o gesto de levantar a mão. O avô adiantou-se: Que nem te atrevas, mulher, a tocar no meu neto! E se alguma coisa lhe tivesse acontecido havias de te haver comigo! Desde esse dia, deixei de ter medo dos violentos ralhetes da mãe e da nudez do seu afeto. Foi como se tivesse sido vacinado. O que até à altura me tinha feito sentir tão infeliz, um menos que nada, passou a ser aceite por mim com quase compreensão. Recuperei uma dignidade limpa com o carinho e a força de carácter do avô. Tinha 6 anos e picos.
Paula Sá Carvalho
in TEMPO EXTRA, Poética edições