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Fora com os mendigos!

Dia D-25. Faltam 25 dias para as eleições. 

Ontem, 16 de maio, a ministra do Interior declarou que a proibição da mendicidade decidida pela maioria DP/CSV que governa a Cidade do Luxemburgo era contrária à legislação nacional e internacional. 

Como tínhamos dito. Eis as palavras que proferi[1] a respeito essa decisão.

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A maioria DP/CSV quer proibir a mendicidade através de um novo artigo do regulamento municipal. Esta medida justificar-se-ia pela necessidade de lutar contra a mendicidade organizada. Nós, os Verdes[2], discordamos de uma tal proibição. Reprimir não resolve.  Se, por um lado, encaramos com seriedade o problema da mendicidade organizada e, sobretudo, o crescente sentimento de insegurança da população, recusamo-nos, por outro, a participar na caça ao voto à custa dos pedintes. 

Proibir a mendicidade é socialmente injusto, intelectualmente desonesto, politicamente oportunista, juridicamente questionável e completamente ineficaz.

Os mendigos incomodam. Suscitam emoções contraditórias: compaixão e solidariedade, angústia e rejeição, curiosidade e nojo. E isso basta para proibir a mendicidade? Deveremos brandir varapaus e gritar «Fora commendigos!»?

A Cidade do Luxemburgo contava com 197 sem-abrigo em fins de outubro de 2022, aquando do primeiro recenseamento dos sem-abrigo realizado pelo ministério da Família[3], do quais só uma parte pede esmola. Assim, questionamos o sentido e a proporcionalidade de uma medida destinada a impedir cerca de 70 mendigos de procurar meios de subsistência para «proteger» dezenas de milhares de residentes e turistas.

A proibição da mendicidade no centro e da zona da estação central vai desviar os pedintes para outros bairros da cidade, conduzindo a uma exclusão e desvalorização ainda maiores de pessoas que não ficam bem à porta de lojas de luxo e não se coadunam com a imagem do citadino chique, do turista consumidor ou da capital mais rica da Europa.

Por que razão há de ser proibido obter dinheiro apelando à generosidade, à compaixão ou à humanidade, desde que não se recorra a meios já proibidos por lei, como a simulação de uma enfermidade física? Porque pensamos nós que os mendigos, todos os mendigos, têm obrigatoriamente de procurar e aceitar as ajudas que as nossas organizações sociais e caritativas lhes propõem? Devemos também proibir os cidadãos de dar esmola diretamente aos pedintes?  Por que carga de água teríamos nós de nos limitar à caridade «organizada», fazendo donativos apenas a organizações respeitáveis? Não, não há nenhuma razão para castigar os pedintes que pedem esmola no espaço público sem cometer qualquer crime.

Numa sociedade que tanto insiste na importância da convivência, convém recordar que o espaço público é detodos. É salutar que a miséria e a necessidade de ajuda sejam visíveis no espaço público, tal como a deficiência, a doença ou a velhice. E é possível responder com a mesma cortesia a um mendigo que nos interpela para implorar uma esmola e a uma senhora bem vestida que pede uma informação.

Falei de desonestidade intelectual e oportunismo político. Choca-nos a amálgama entre mendicidade, toxicodependência, situação de sem-abrigo, segurança e salubridade. Embora a realidade seja complexa, um mendigo nem sempre é um sem-abrigo ou um toxicodependente; um sem-abrigo pode não pedir esmola; um mendigo não tem de ser um ladrão e a maioria dos ladrões não mendiga. Misturar tudo isto só serve para confundir as pessoas e agravar o sentimento de insegurança da população.

Pensamos também que é desonesto fazer crer que não é possível lutar eficazmente contra a mendicidade organizada sem proibir a mendicidade dita «simples». Por outras palavras, proíba-se a mendicidade simples e a mendicidade organizada desaparecerá como por magia…  E isto não é deitar areia para os olhos das pessoas??

A mendicidade organizada é já punida pelo Código Penal nos aspetos relacionados com o tráfico de seres humanos. Por seu turno, o regulamento municipal já proíbe a mendicidade em grupo na capital. Essas situações devem ser punidas com firmeza pela polícia e pela justiça, como se espera num Estado de Direito. Recordemos que os próprios mendigos implicados na mendicidade organizada são muitas vezes vítimas da rede criminosa que os explora. São as redes criminosas que importa combater.

Quanto aos aspetos jurídicos, poderá um regulamento municipal prever restrições às liberdades individuais se estas restrições não estiverem previstas na legislação nacional?

Uma proibição geral da mendicidade é também contrária à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. De acordo com o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no processo Lacatus[4] contra a Suíça, a mendicidade não é mais do que pedir ajuda a outras pessoas e é abrangida pelo direito à privacidade. O Tribunal considerou que as medidas de proibição geral não eram proporcionais ao objetivo prosseguido. O direito suíço foi posteriormente alterado.

Convém ainda lembrar que a liberdade de circulação e de residência das pessoas na União Europeia, tal como estabelecida pelo Tratado de Maastricht em 1992, é a pedra angular da cidadania da União, da qual o Grão-Ducado do Luxemburgo é um Estado Membro fundador. A liberdade de circulação diz respeito a todos, incluindo os mendigos.

Quantos aos aspetos práticos, a proibição da mendicidade é uma medida que não surtiu os efeitos esperados – assim o dizem as cidades o fizeram no passado, como Dudelange, Diekirch e Ettelbruck. Uma vez proibida a mendicidade, os agentes municipais e os pedintes passarão a jogar ao gato e ao rato pelas ruas da cidade. Não estão previstas multas – como poderia um mendigo ser multado se a lei diz que pedir não é uma infração? E se pudesse ser multado, com que dinheiro pagaria? Proibir a mendicidade vai complicar o trabalho social e o acompanhamento feito pelos serviços que trabalham no terreno. Em resumo, para a maioria DP/CSV, o verdadeiro crime não é pedir, estar no sítio errado, à hora errada.

É uma ilusão afirmar que, ao proibir a mendicidade, os mendigos irão desaparecer: eles são a outra face da abundância. Tal como os emigrantes, os mendigos vão para onde há riqueza, num mundo onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. E a Cidade do Luxemburgo é rica.

O papel dos políticos não é atirar poeira para os olhos do povo ou procurar obter votos a qualquer preço. Cabe aos políticos esclarecer e fazer avançar a opinião pública para uma compreensão mais profunda e mais solidária das nossas realidades.

A mendicidade é um problema social e societal, e a repressão não traz nem alívio nem soluções imediatas. Temos de começar por dar um teto às pessoas que estão na rua. Primeiro a casa[5]! Simultaneamente, o município tem de prosseguir o trabalho de prevenção e sensibilização no terreno. Os perfis dos sem-abrigo e dos mendigos são muito diversos. Para acompanhar estas pessoas, não há uma receita única, mas sim abordagens caso a caso.

É urgente descentralizar as estruturas sociais para que os problemas não se concentrem todos nos mesmos bairros. É também preciso ir ver o que fizeram outras cidades para estabilizar as pessoas vulneráveis e ajudá-las a encontrar uma atividade remunerada.

E sejamos honestos: a mendicidade nunca poderá ser completamente erradicada. Porque há a guerra, a crise energética, a inflação, os preços da habitação, as catástrofes naturais e… os revezes da vida.

Em suma, qualquer que seja o ângulo de análise que adotemos, nenhum deles justifica, aos nossos olhos, a proibição da mendicidade. Trata-se de pura hipocrisia pré-eleitoral. Não podemos aceitá-la. 


[1] Versão portuguesa, editada, da intervenção feita em nome de déi gréng na sessão do conselho comunal da Cidade do Luxemburgo em 27 de março de 2023

[2] déi gréng, https://vdl.greng.lu/

[3] Ver https://mfamigr.gouvernement.lu/fr/support/recherche.gouvernement+fr+actualites+toutes_actualites+communiques+2023+02-fevrier+21-personnes-sans-domicile.html

[4] Ver https://www.housingrightswatch.org/fr/jurisprudence/lăcătuş-c-suisse-requête-no-1406515-19012021

[5] Housing first, ver https://cnds.lu/cnds-wunnen/housing-first/

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