Ana Margarida Silva, uma estilista da diáspora que cruza as fronteiras da moda

Natural do Faial, Ana Margarida Silva é uma designer de moda que transformou a sua paixão pela arte e criatividade numa carreira internacional de sucesso. Criadora da marca Anna Margarette, desenvolvida no Reino Unido, onde vive há mais de uma década, Ana destaca-se pela sua abordagem conceptual e vanguardista, com coleções apresentadas nos quatro maiores palcos da moda mundial: Londres, Nova Iorque, Paris e Milão. Com um percurso que combina inovação, tradição e uma inegável ligação às suas raízes açorianas, a estilista utiliza o seu trabalho para abordar temáticas profundas, como a saúde mental. Nesta entrevista exclusiva ao BOM DIA, Ana aborda a sua visão criativa, os desafios superados e as conquistas que a colocaram no mapa global da moda.

Como é que a sua infância e juventude no Faial influenciaram a sua visão criativa e o seu estilo como designer de moda?
Devido a vários factores. Aos quatro anos, comecei a dançar ballet na escola primária; aos cinco, comecei a cantar no grupo coral da catequese nas Angústias; aos seis, comecei a tocar violino no Conservatório da Horta; aos oito, a tocar flautim e, no meio de um mundo cheio de criatividade, para além do grupo coral, dos espectáculos de ballet, também entrei, aos nove anos, para a Sociedade Filarmónica União Faialense. Participar nestes grupos, cujos figurinos e uniformes não eram usuais no dia a dia e, que me deixavam encarnar uma pessoa ou personagem diferente, influenciou (e muito!) a minha visão como designer de moda: como criança dava-me a possibilidade sonhar com algo diferente e que estava entre o mundo da realidade e da fantasia. Criar é estar nesta bolha criativa e de inovação em que nos podemos expressar de diversas maneiras.
O que a levou a interessar-se pela moda e como começou esse caminho?
A minha bisavó, avó e mãe sempre estiveram ligadas ao mundo da confecção, bordado e croché, o que teve uma grande influência no meu percurso. A minha mãe permitiu-me expressar-me pelas roupas que vestia, mesmo que, por vezes, não fossem bem vistas pela sociedade, por não serem consideradas apropriadas para a minha idade. Esse apoio foi determinante para que eu começasse a explorar a moda como forma de expressão artística desde pequena. Contudo, só aos 13 anos decidi que que queria seguir esta carreira. Passava as aulas inteiras de ciências, que eu “tanto adorava”, a desenhar e a mergulhar nesta bolha criativa que me guia ainda hoje.
Que desafios enfrentou ao sair de uma ilha relativamente pequena para se afirmar num cenário global?
Enfrentei muitos desafios, preconceitos e bullying psicológico. Saí do Faial aos 17 anos, era muito ingénua, não tinha noção do caminho árduo que me aguardava e, confesso que não estava preparada para um mundo tão competitivo nesta idade. O preconceito e o bullying psicológico, por vir de uma ilha relativamente pequena, foi muito frequente na Universidade: muitos dos alunos e professores não levavam a sério um açoriano querer seguir esta área e, para muitos eu iria voltar para a ilha após a conclusão do curso. O que eles desconheciam era a minha teimosia e a promessa que fiz a mim mesma: provar ao mundo que um ilhéu é perfeitamente capaz de se destacar. Trabalhei intensamente e sempre respondi ao preconceito e às adversidades com o meu esforço e determinação. A nível global, penso que foi uma surpresa para muitos: quando digo que sou faialense e, por consequente açoriana, recebo muitas críticas positivas afirmando que devia e devo ser muito persistente por estar a trabalhar nesta área numa escala global, sendo que venho de um país em que as condições para esta carreira não são as melhores.
Com que idade foi para o Reino Unido e quais os motivos que a levaram a decidir fixar-se neste país?
Tomei a decisão de ir viver para o Reino Unido aos 26 anos. Embora não tenha sido uma surpresa, esta decisão levou algum tempo a ser tomada, pois, já durante a universidade, pensava em fixar-me numa das quatro capitais da moda mundial. Os motivos para essa mudança eram claros: o mercado português é pequeno e não há um investimento ou preocupação por parte do governo em divulgar ou explorar este sector num cenário global. Isso faz com que o emprego seja escasso e não permita o crescimento de um profissional na área da moda. Além disso, no que toca a celebridades, vivemos num mundo de empréstimos de vestuário e figurinos para certos eventos que têm um custo elevado e que não tomam a proporção que deveria tomar, ou seja, resultar em mais vendas. Mas também a educação portuguesa e o poder económico português: comprar uma peça de um criador português é algo praticamente inexistente, tendo os designer que individualmente e sem apoios governamentais, expandir os seus negócios a fim de obter o retorno financeiro do investimento que é feito.

Conte-me um pouco sobre a sua marca e sobre o seu projeto mais atual? Que conceito ou mensagem deseja transmitir através do seu trabalho?
A minha marca (Anna Margarette) pretende chegar a um público diferente, mais conceptual, que procura algo único. Não repito peças, e ao longo dos anos fui desenvolvendo coleções que refletem o meu crescimento como diretora criativa. Cada coleção é distinta, mas todas têm a minha assinatura pessoal, seja nas assimetrias, na manipulação dos tecidos ou nas camadas com que gosto de trabalhar ao desenhar as minhas criações. Sempre procurei levar a minha mensagem para um mundo entre a fantasia e a realidade.
O meu projeto mais recente é a coleção “Souless” e fala um pouco sobre este conceito de um indivíduo que está a passar por algo difícil como a doença mental e que é na representação do que o que a sociedade espera dele ao colocar uma máscara que a busca pela fantasia do demonstrar ser perfeito, sem falhas e sem problemas, o que não é a realidade e tal é demonstrado através das peças desta coleção. Estamos num mundo complicado que cada vez mais nos dissocia da nossa própria identidade ou da nossa voz própria para entrar nos ditos parâmetros ideais da sociedade. A criatividade e a arte são, para mim, formas de resistência a esse fenómeno pois curam, ensinam e nos levam a pensar e a questionar situações inóspitas do nosso quotidiano. Expressar a nossa identidade sem receios ou julgamentos do que o outro possa pensar é, em parte, a minha mensagem também.

Que materiais e técnicas prefere usar nos seus designs? Existe algo de único que represente a sua herança faialense ou portuguesa?
Já usei algumas vezes materiais açorianos e portugueses que muitos desconhecem. Numa das minhas colecções iniciais, desenhei um brinco que continha, no seu interior, o trabalho artesanal açoriano que usa o miolo de figueira. Mais tarde, usei as cores do mar e as hortênsias (artificiais) para um concurso internacional de misses, com o intuito de difundir a essência açoriana tão divulgada por esta flor, que é também importantíssima na ilha do Faial e, que devido à sua quantidade também é considerada como “Ilha Azul”. Mais recentemente, usei a cortiça portuguesa na minha coleção “Ascension”. Embora gostasse de usar mais técnicas e materiais do artesanato açoriano, o tempo muitas das vezes é escasso, o que impossibilita que possa adicionar algo que requer tempo e mão de obra preparada para efectuar técnicas numa escala maior. A maior herança faialense que carrego é, sem dúvida, a arte açoriana: nela cresci e me tornei no que sou enquanto designer.

Como descreve o seu estilo de design? Pode indicar alguma peça ou coleção que tenha um significado especial para si?
O meu estilo de design é criativo, conceptual e vanguardista, com um foco especial nos detalhes, na inovação e no desenvolvimento de novos movimentos ou formas assimétricas. Para mim, a minha primeira coleção de moda “Les Oiseaux Marine – Exquisite Corpse”, é a mais complexa, importante e especial que desenhei até hoje. É uma coleção de alta costura que pretendia desafiar um panorama português de moda em que a repetição de formas e ideias era visível. Em relação a esta coleção, também ouvi, por parte de alguns alunos e professores em Portugal, que eu nunca iria conseguir apresentar uma coleção de alta costura num curto espaço de tempo e que tivesse uma confeção de qualidade. A verdade é que, ao longo da minha carreira, nunca dei ouvido a pensamentos negativistas. Para além de ser teimosa, a minha visão e a minha intuição nunca me deixaram duvidar daquilo que sou capaz de mostrar ao mundo. Na altura, para que esta coleção se tornasse realidade, contei com a colaboração da mestre de moldes Dona Rosalinda e a sua equipa de quatro senhoras na modelagem e confecção. Foi também a única coleção apresentada no Faial, e a que levei para apresentar na Semana de Moda de Nova Iorque em 2019, o que a torna ainda mais especial para mim.
Sei que está a fazer um mestrado na área da moda e do luxo. Como tem sido essa experiência?
Sim, estou neste momento a fazer um mestrado em Executive MSc in Strategic Management of Fashion and Luxury (Mestrado Executivo em Gestão Estratégica da Moda e do Luxo), em Paris. Trata-se de uma das universidades de moda mais prestigiadas do mundo, considerada a terceira melhor universidade a nível global e a melhor de França na área de mestrado em gestão de moda. Tem sido a melhor experiência da minha vida e, talvez, a mais exigente, porque trabalho e estudo ao mesmo tempo, não tendo qualquer ajuda ou apoio financeiro do governo português. Esta experiência tem-me proporcionado a oportunidade de conectar com alguns dos mais distintos profissionais e marcas da área do luxo e da moda, algo que sempre ambicionei, mas que acredito ser a altura certa para vivenciar, dada a maturidade adquirida ao longo dos anos trabalhando na indústria da moda.
Quais são as maiores mudanças que tem observado na indústria da moda desde que começou a trabalhar nesta área?
As mudanças na indústria da moda têm sido muitas e, com elas, surgem mais desafios, tornando este mundo ainda mais complexo e difícil. Em 2007, quando comecei os meus estudos, ainda se faziam desenhos técnicos e moldes manualmente. Muitas das posições de trabalho que havia na indústria desapareceram devido ao crescimento tecnológico na indústria. E penso que, no futuro, com a introdução da inteligência artificial, mais empregos desaparecerão. No entanto, acredito que surgirão também novas posições que trabalharão com esta plataforma digital. Apesar disso, temo que, aos poucos, a criatividade e a inovação humanas possam ser afetadas, pois é apenas o ser humano que consegue transmitir emoções, imaginação e experiências vividas. Essas qualidades têm o poder de curar, educar e possibilitar a expressão individual de cada pessoa na nossa sociedade.
Como é ser uma designer portuguesa a construir uma carreira num mercado competitivo como o britânico?
Tem os seus desafios, sendo o principal o facto de ter de demonstrar constantemente o meu trabalho e valor numa indústria extremamente competitiva. Não desistir, manter o foco e seguir em frente sem receio de falhar é o conceito que adotei para enfrentar todas as dificuldades do dia a dia, tanto no mercado britânico como a nível mundial.
Sente que já recebeu reconhecimento em Portugal pelo seu trabalho? Sente-se conectada com a comunidade criativa portuguesa?
Penso que, passo a passo, o meu trabalho vai sendo um pouco reconhecido em Portugal e considero que isso se deve ao facto de ter voltado, após muitos anos, a apresentar as minhas colecções no Moda Madeira. Outro ponto que fez a diferença foi o facto de, em 2013, ter sido recebida na Embaixada Portuguesa em Londres pelo Embaixador de Portugal, uma vez que estava a representar o país numa competição mundial com 42 países no International Fashion Showcase, inserida na Semana de Moda de Londres, juntamente com outros cinco designers portugueses. Contudo, sinto que, em comparação com o nível mundial, o reconhecimento português está muito aquém. Isso não me surpreende, pois Portugal não valoriza a área em si nem compreende o quão difícil é para um designer português abrir caminho a nível internacional e marcar presença nas maiores semanas de moda internacionais que, por si só, são restritas a um número limitado de marcas e designers independentes. Relativamente à ligação com a comunidade criativa portuguesa, penso que, no que diz respeito à moda, é muito limitada, pois trata-se de uma área que, infelizmente, continua bastante ofuscada em Portugal.
O que a inspira no dia a dia?
A arte. Ela é a minha cura e a minha maior inspiração. Sem ela nunca me teria tornado na profissional que sou hoje.
Quais foram os momentos mais marcantes da sua carreira até agora?
Apresentar as minhas coleções nas quatro principais semanas de moda do mundo: Londres, Nova Iorque, Paris e Milão, e trabalhar nos figurinos do programa televisivo Mask Singer 3 (A Máscara 3) para o canal britânico ITV.
Quais são os seus objetivos e sonhos para o futuro?
Tenho muitos objetivos e sonhos, mas quero-os guardá-los para mim neste momento.
Com os seus mais de 14 anos de experiência na área, qual é o maior conselho que daria a quem quer seguir uma carreira na moda?
O meu conselho é que, antes de mais, façam muita pesquisa sobre a área da moda a nível mundial, para que possam compreender o quão complexa e exigente ela é. É fundamental ser persistente, pois os sucessos advém de muitos insucessos e, para superar os desafios, é preciso amar profundamente esta área e nunca desviar o foco no objectivo final de inovar. Procurem apoio financeiro, uma vez que é uma área financeiramente exigente. Quantos aos estudos e à carreira profissional, não se limitem ao mercado português: se querem voar e crescer nesta área, os sacrifícios de deixar o vosso país e a vossa família para viver noutro local serão inevitáveis. É necessário uma preparação psicológica sólida para enfrentar as idas e vindas ao país de origem, bem para lidar com os desafios diários da indústria, que é extremamente competitiva.
Do que sente mais saudades quando pensa no Faial/ Açores? E como “mata” essas eventuais saudades?
Sinto mais saudades da minha família e da comunidade faialense que me viu crescer e que me moldou para este mundo artístico. Quanto à forma como “mato essas saudades”, na realidade, elas não se “matam” – estão sempre lá, todos os dias. Tornam-se ainda mais difíceis de ultrapassar quando os dias não correm tão bem.
*A ilha do Faial, conhecida como “a Ilha Azul”, deve este nome às hortênsias que florescem em abundância e tingem a paisagem de tons azulados, criando cenários únicos. Este apelido, imortalizado por Raul Brandão em “As Ilhas Desconhecidas”, reflete também a ligação profunda da ilha ao Atlântico que a rodeia.
Texto: Fabiana Bravo