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Voando sobre um ninho de cucos

Vem, meu amigo
meu amigo cuco
vamos por aqui
olha para o plano:
seguimos por trás do pavilhão 11
contornamos os arbustos e as pitas
e dali, ao pé da sala 26,
já poderemos avistar as miúdas da Afonso III
a saltarem ao elástico e à macaca
nas suas saias curtas.

Vem, vamos apanhar paus de gelados
para construir barcos e jangadas miniatura
vamos mascar quatro, cinco e seis pastilhas gorila ao mesmo tempo
para completar a coleção de cromos dos pioneiros da aviação
vamos encher os nossos bolsos e mochilas com tampas azuis
das esferográficas bic cristal para construir naves espaciais
vamos usar o tubo em plástico transparente da caneta como zarabatana
e desencadearmos batalhas implacáveis
com bolinhas de papel com os marrões da frente.

Vamos trocar revistas da Mónica e do Patinhas
e autocolantes da Panini, já tens o Jordão e o Bento?
vamos ganhar berlindes em jogos esforçados com os putos dos Gorjões
vamos rebentar sem piedade os piões dos rufias das Gambelas
vem jogar comigo à bola sob as amendoeiras do Montenegro
e no intervalo dos golos feitos em balizas com dois paus
vamos falar com as raparigas que tomam banho no tanque do Cabrita
e nós sem conseguirmos disfarçar o quão maravilhados e embaraçados
ficamos com o que nos cresce sem darmos por isso nos calções.

Vem, vamos saltar regatos em Vale das Almas
ver os aviões a descolar na Arábia enquanto chupamos alfarrobas
vamos subir aos pinheiros e desbravar arbustos na mata do Pontal
com a velha catana roubada que o teu pai trouxe de Moçambique
e a espingarda de pressão de ar
vamos faltar às aulas para ir à praia de Faro
vamos mergulhar da velha ponte na ria
beber sumóis e devorar tostas mistas gigantes
no Forte e no Bardagina.

A geografia do velho Cerdeira serve para quê
se não nos ensinar o nome dos ventos que devemos enfrentar
nos nossos drakares de piratas vikings,
a filosofia do Saint-Aubyn e do stôr Café
explicam a sair da caverna de Platão
mas não desta cidade amodorrada
e esquecida e parada no tempo ?
Nas aulas da Idalécia e do Gonzaga
falamos das odes do Camões
mas não do ódio dos homens
nem dos nossos medos e ignorâncias
do nosso acne, do nosso corpo e desta juventude
com a qual podemos tudo e não sabemos fazer nada
o professor de matemática não nos sabe dizer
para que servem as equações e as fracções
se quisermos comprar croissants na Gardy
ir à sessão da tarde no cinema ver o último Indiana Jones
comprar um casaco Chevignon
numa loja chique da rua de Santo António à Pontinha…

Como lhes explicar que rimos de tudo isso
e sobretudo do ar afetado com que os adultos
já demasiado velhos e alheados da sua própria mocidade
se sentam e conversam nas esplanadas
do Aliança, do Versalhes e do Seu Café
enquanto debicam café e imperiais
a divagar sobre o complot de Camarate
ou do que pode fazer o rapaz de Boliqueime para safar o país.

Vem, meu amigo, vamos almoçar no jardim da alameda
ver os pavões a abrirem os seus enxovais coloridos
como nós as nossas prosas adolescentes
vamos sentar-nos na relva cortada de fresco
e acalmar as nossas poluções borbulhentas
ao som tranquilo e sereno da cascata e do chafariz
vamos deixar as águas apaziguar as nossas emoções
exacerbadas pela pubescência que nos atapetou
o rosto e o corpo da noite para o dia
vamos ensaiar sestas sob as copas frondosas
dos castanheiros, dos chorões e das palmeiras
banhados por todas estas cores dos aloendros
esqueçamos que temos teste de Química amanhã
enquanto mordemos tâmaras caídas
como se fossem uma sobremesa requintada
depois do nosso almoço de sandes de fiambre
ou de tulicreme e do nosso compal.

Vamos contar anedotas
e rir das histórias da nossa turma
na última excursão à cascata da ribeira da Asseca
vamos falar do sentido da vida, da razão da existência,
acreditas em Deus? sou agnóstico ! o que é isso ?
já leste Pessoa, Poe, Rimbaud?
Vamos ouvir Paião, Sérgio Godinho, ler Gedeão e Régio
pintas o cabelo, és punk? anarco-quê?
o que significa essa pulseira ?
põe aí a tocar Sex Pistols, Cure, Marillion
queres trocar esta cassete dos Heróis do Mar por uma dos Xutos?
sintoniza aí no radio de pilhas o Oceana Pacífico na RFM
enquanto falamos de poesia, da tua, da minha
dos canhões da paixão e das raparigas parvas
que não respondem às nossas cartas
nem aos nossos pedidos de namoro
dos nossos amores impossíveis, dos nossos projectos
de quando formos grandes
do futuro, mas que futuro? do nosso futuro
quem sabe um dia em terras prometidas
longíquas e com nomes que rimam com leite e mel
como Moselle ou Amstel,
quem sabe?

Vem, meu amigo, pega na tua melhor caneta
e no teu caderno ambar preto que tens dobrado
no bolso traseiro das calças de ganga
e com a caligrafia mais elegante
continuemos a escrever rimas e quadras frouxas e poemas abstrusos
como se tivéssemos doze anos outra vez
e tudo fosse possível, a inocência, a candura,
a graça, o atrevimento, a audácia e a coragem
as aventuras, as primeiras vezes
como se a primeira vez
fosse possível outra e outra vez.

JLC02092021

(Imagem : DMCA/CreativeCommons)

 

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