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Trump

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Após as primeiras 3 semanas do segundo reinado de Donald Trump, provavelmente as mais caóticas e mirabolantes desde os dias em que George Washington, o primeiro presidente dos EUA, serviu o povo americano (de 1789 e 1797), o mundo ainda está a tratar de despertar do pesadelo que desde já se antevê chegar, caso se chegue a implementar ipsis verbis a catadupa de decisões irracionais plasmadas em dezenas de “Executive Orders”, magistratura de governo da nação por decreto do Presidente, logo no primeiro dia.
 
Tratados internacionais rasgados ou ameaçados de o serem sem contemplações, regras do jogo no comércio internacional alteradas unilateralmente, violações crassas de disposições constitucionais (jus soli, por exemplo), deportações em massa de cidadãos que nalguns casos levam anos a trabalhar nos EUA, contratações de pessoas controversas para desempenhar cargos de altíssima responsabilidade numa nação como os EUA, ainda a mais poderosa à face da Terra (infelizmente não creio que seja por muito tempo), enfim, a câmara de horrores é esmagadora, e a procissão ainda vai no adro.
 
Os jornais e programas televisivos têm estado pejados de detalhes e histórias horripilantes sobre o que já está a ser feito, à luz obviamente daquilo a que sempre fomos habituados. Ou seja, que a generalidade dos países realmente importantes no mundo, a começar pelos EUA, estavam e estão ainda geridos por pessoas sérias e credíveis, equânimes e sensatas, com visão de mundo e formação superior, magnânimas, altruístas, e dispostas a servir o povo. Exceções, que as há um pouco por todo o lado, quer na Ásia (Coreia do Norte), América Latina (Venezuela), África etc., apenas confirmam a regra. E são tão poucas, que ainda são (eram…) mantidas em curral de contenção sanitária, como se do vírus que nos chegou de Wuhan se tratasse.
 
Mas a cada dia que passa somos surpreendidos com alguma notícia que abala ainda mais os nossos alicerces de sanidade mental, como se andássemos há 3 semanas sucessivas a receber bofetadas dos dois lados da cara, sem poder respirar para recuperar os sentidos e a cordura. Nunca antes tinha demorado tanto tempo para conseguir formar uma opinião, e partilhar o que me vai na alma.
 
A última que me chega hoje, e novamente me abala, foi apresentada no último programa de debate entre Miguel Poiares Maduro e Susana Peralta aos domingos no telejornal da RTP (9/2). Trump decidiu (a meu ver uma das poucas coisas acertadas que está a tentar fazer) atacar o aparelho estatal burocrático dos EUA, um Moloch devorador de impostos altamente ineficiente e castrador, e criou o DOGE (Department of Government Efficiency), gerido por Elon Musk, um outro egocêntrico doente (mas genial). Mas, e aqui “a porca torce o rabo”, também criou o Department of Faith (Ministério da Fé), liderado por uma tele-evangelista lunática da Florida chamada Paula White, que repete goebbelianamente até à saciedade nos seus discursos as mensagens que ela quer meter na cabeça oca de muitos (demasiados) americanos. É preciso ver para acreditar, não percam a oportunidade de puxar o programa para trás e ver o debate na RTP, ou ir ao TikTok ver o vídeo da Paula White, futura Ministra da Fé no Governo Trump !
 
Chegados aqui, perguntar-me-ão: “Como é possível” ? É precisamente o que eu próprio me tenho andado a perguntar desde que Trump, um condenado pela justiça americana (com sentença transitada em julgado, mas sem que lhe tenha atribuída pena para cumprir, uma novidade só mesmo para alguns iluminados, e que outros, noutros países, irão certamente tratar de emular…), foi eleito pela segunda vez como presidente dos EUA, após um primeiro mandato presidencial caótico, desastroso, ruinoso, pecaminoso, do ponto de vista legal, ético e moral.
 
Comecei a vislumbrar um pouco melhor os factores que levaram Trump ao poder quer na primeira vez (2017 a 2021), quer ainda mais agora na segunda (2025-?), quando li há uns meses atrás o livro do seu Vice-Presidente, J.D. Vance (“Lamento de uma América em ruínas”, Hillbilly Elegy no original, que já passou a filme na Netflix).
 
A “esquerda” americana, uma esquerda fina, liberal, hiper-caviar, com bom e refinado gosto pelas coisas boas da vida, em termos comparativos com o resto do mundo (falamos do país que corporiza o capitalismo, sem o ter inventado), na qual durante décadas os miseráveis marginalizados do Rust Belt (“cinturão da ferrugem”, aquilo que aqui em Portugal é corporizado, na verdadeira acepção do termo, pelo nosso Barreiro) se reviam, deixaram de apoiar os Democratas.
 
Tal como no Barreiro, e em todas as outras regiões em que o PCP dominou a autarquia politicamente, e de onde foi varrido por motivos similares, os Democratas deixaram de ter ligação aos deserdados, que nunca viram chegar os “amanhãs que cantam”. Os Democratas deixaram de os entender, deixaram de lutar para lhes dar uma vida digna com acesso real ao elevador social (ADN do “American Dream”). Acharam que dar-lhes subsídios, cupões, rendimentos mínimos, e deixar que apodrecessem de droga nas suas miseráveis casotas de madeira dos Estados do Midwest, os iria manter contentes e motivados para continuar a depositar os seus votos pelos Democratas nas urnas. Erro crasso, mortal.
 
Mas ainda me faltava um elemento fundamental para entender como foi possível os Republicanos, que têm verdadeiro horror a essa gente, que sempre os consideraram “escumalha”, os conseguiram no entanto cativar, motivar, energizar para votar num fenómeno narcisista, egocêntrico, mercenário, hipócrita, o produto “Trump”.
 
Para mim (e não me canso de sublinhar o “para mim”), há vários grandes motivos
 
 1) As redes sociais, que permitiram aos Republicanos de Steve Bannon comunicar-se massivamente com os “labregos” (os tais hillbillies), sem ter de se chegar perto deles (cruz credo…)
 
 2) A Inteligência Artificial, que permitiu que empresas sem escrúpulos de qualquer índole (tipo Cambridge Analítica) e grupos de interesses específicos (extrema-direita, russos), fabricassem realidades alternativas ajustadas ao perfil de sensibilidade de CADA receptor de mensagens. Por exemplo, se alguém está preocupado com a criminalidade, as mensagens que lhe chegam pelas redes potenciam esse facto, criticam os que estão no poder, e dizem-lhe que o salvador da pátria é… o Donald Trump, claro! Em Portugal não precisamos de redes sociais para isso, o Ventura e o Arruda encarregam-se de potenciar o alarme social.
 
 3) A essência do cidadão americano. Este ponto é assaz interessante, e só cheguei a ele após ter terminado há poucos dias de ler o livro “O pesadelo de ar condicionado”, talvez a obra mais marcante do genial escritor americano Henry Miller. Em 1939, após uma década a viver na Europa, Henry Miller volta aos EUA para escapar ao som dos tambores de guerra, que já estavam em plena música com a invasão da Polónia. Miller, que tinha saído da América durante a Grande Depressão de 1929, queria redescobrir a alma do seu país renascido das cinzas e, em pleno início de uma época de ouro e de pujança económica da economia industrial americana, que se aceleraria ainda mais com a II Grande Guerra, empreendeu uma viagem de mais de 3 anos pelas mais marcantes regiões dos EUA. O livro é o resultado desse périplo pela América profunda, e foi publicado em 1945, um ano antes de Trump nascer ! A edição que comprei em alfarrabista, Edição Livros do Brasil, é de 1988 (43 anos depois!), e o livro nessa altura estava proibido de ser vendido no Brasil…
 
Eu não posso descrever um livro de Miller num artigo limitado em espaço, por muito talentoso que fosse a resumir obras de terceiros (e não sou). Mas houve uma pequena parte que me marcou, porque explica sem qualquer dúvida, em conjunto com os pontos anteriores, a razão pela qual Trump está na Casa Branca em Washington.
 
Escreve Miller: “ Estamos habituados a pensar que somos um povo emancipado; dizendo que somos democratas, amantes da liberdade, isentos de preconceitos e ódio. Este é o cadinho, a sede de uma grande experiencia humana. Belas palavras, plenas de sentimento nobre e idealista. Na realidade, somos uma populaça activa, cujas paixões são facilmente mobilizadas por demagogos, HOMENS DOS JORNAIS, CHARLATÃES RELIGIOSOS, agitadores e quejandos. Chamar a isto uma sociedade de pessoas livres é blasfemo.”
 
Eram tempos em que não havia redes sociais (mas havia jornais e charlatães religiosos), e em que os russos eram claramente o inimigo a abater, e não amigos dos movimentos de extrema-direita musculada e autocrática por esse mundo fora.
 
Entendi o fenómeno Trump de imediato, e só tenho que tirar o chapéu que um tipo como ele, 80 anos depois deste texto acima ter sido escrito, certamente com a ajuda de um Luis Paixão Martins americano, ter descoberto a essência da alma dos eleitores americanos, pondo descamisados, deserdados, desempregados, sem-abrigo, latinos, negros, e toda a familia LGBTQ e sabe Deus quem mais a votar nele, por acharem que esse enviado de Deus na Terra é quem lhes vai abrir o caminho do nirvana, e resolver os seus problemas. Quanto ao resto mundo, António Costa incluído, “habituem-se”.

José António de Sousa

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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