O nascimento do Tripartidarismo em Portugal e do ‘Calimero’ regional

As eleições legislativas de 2025 trouxeram à tona aquilo que muitos já suspeitavam e poucos ousavam admitir: o xadrez político nacional ganhou uma nova peça. Ou melhor, duas. Por um lado, o Chega consolidou-se como terceira força nacional, rompendo com o velho binómio PS-PSD que, durante décadas, se revezou entre o poder e a oposição como dois velhos jogadores de dominó no banco do jardim. Por outro, o Parlamento recebeu um novo inquilino madeirense com sotaque, cartola de regionalismo e discurso de vitimização polida: o Juntos Pelo Povo (JPP).
Sim, caro leitor. Tripartidarismo é agora a palavra da moda. Já não basta saber distinguir entre rosa e laranja — é preciso considerar o preto, que deixou de ser só cor de luto e passou a ser cor de protesto, de indignados, e de quem acha que “isto está tudo mal”. O Chega, com a sua retórica inflamável, apanhou o comboio da desilusão e montou-se nele com um megafone na mão. Talvez o mais surpreendente seja a naturalidade com que parte do eleitorado acolheu esta mudança, como quem muda de canal e encontra finalmente um reality show onde todos dizem o que pensam — ou pelo menos o que berram com mais convicção.
O novo equilíbrio parlamentar levanta questões pertinentes: como dialogar num hemiciclo onde três forças puxam em três direções diferentes, como num triciclo com rodas desalinhadas? A governabilidade será um desafio digno de contorcionismo democrático. Ou, como diria um taxista lisboeta: “Vai ser bonito, vai.” Talvez a solução esteja em criar uma nova modalidade legislativa: o debate com árbitro, cartão amarelo e apito final. Não faltará emoção.
Mas falemos do verdadeiro protagonista cómico desta ópera parlamentar: o “Calimero” Regional. Que raio é isso? Perguntará o leitor menos atento à cultura pop. Calimero era um pintainho preto com uma casca de ovo na cabeça que passava a vida a queixar-se que o mundo era injusto. Ora, não é preciso um esforço hercúbulo para encontrar semelhanças entre esse boneco e certos discursos vindos das ilhas. A política regional portuguesa tem, por vezes, este toque quase lírico de quem canta fados ao vento do Atlântico.
O JPP, partido nascido no seio da Madeira, conseguiu um feito histórico: levar o seu sotaque à Assembleia da República. É uma vitória simbólica, claro, mas também estratégica. Afinal, é mais fácil reclamar por mais verbas quando se tem um microfone nacional. E se há coisa que o JPP sabe fazer, é reclamar. Com elegância, mas reclamar. “Lisboa esqueceu-se da Madeira!”, clamam, com a mesma veemência com que Calimero berrava que era sempre injustiçado. Tudo isso sem perder a compostura, como quem recita Camões enquanto aponta o dedo ao OE.
E não estão sozinhos. Nos Açores, a indignação também tem sotaque e candidatos prontos a apontar o dedo ao centralismo. Como se o Terreiro do Paço fosse uma máquina de triturar aspirações atlânticas. Tudo o que venha da capital é visto com desconfiança, como se cada pacote legislativo escondesse um complô contra as ilhas. Uma espécie de novela política com traços de drama açoriano, onde até as nuvens carregadas parecem conspirar contra as verbas do PIDDAC.
Há, no entanto, algo de profundamente democrático neste “choradinho”. Porque, verdade seja dita, a nossa democracia é também feita de queixas — pequenas, grandes, justificadas ou oportunistas. Se há portugueses que gostam de reclamar do tempo, do preço do pão e do VAR, por que não haver partidos que façam o mesmo, com orçamento e assessoria de imprensa?
Mas voltemos ao palco continental. Se o tripartidarismo é agora uma realidade, que implicações tem para o país? Por um lado, obriga ao fim do comodismo político. O PS e o PSD, acostumados ao velho dueto, terão de afinar os tons perante um terceiro cantor mais desafinado mas com apoio popular. O Chega é uma espécie de punk político num palco onde sempre se cantou fado. E como qualquer punk que se preze, traz a promessa do caos e o encanto da ruptura.
A ironia é que este novo equilíbrio vem acompanhado por um aumento do ruído. O Parlamento vai parecer-se mais com um mercado do que com um templo da democracia. E isso não é necessariamente mau. Até Calimero tinha os seus momentos de razão. E quem nunca se sentiu injustiçado atire a primeira pedra (ou vote no partido do costume). Entre gritos, cartazes, protestos e moções, o mais difícil será ouvir a substância por entre o ruído.
Curiosamente, esta não é a primeira vez que Portugal flerta com o tripartidarismo. Houve um breve momento nos anos 80 em que o PRD tentou ser a terceira via, como aquele amigo que se convida para jantar e acaba a discutir com toda a gente. Não correu bem. Mas os tempos mudaram, as redes sociais amplificam vozes e os eleitores estão menos pacientes com promessas e mais dados a desabafos. A nova geração política cresceu a ouvir podcasts e a fazer scroll em debates no Twitter. O tempo da retórica solene deu lugar ao soundbite venenoso.
O “Calimero” Regional, com o seu charme queixoso, pode parecer cómico, mas não deve ser subestimado. Representa uma tendência: a de que o país está a fragmentar-se, não só ideologicamente, mas geograficamente. E se não for dada atenção a estas vozes periféricas, podem tornar-se gritos. A descentralização, tão prometida e adiada, ganha agora sotaques e rostos — alguns mais simpáticos, outros mais aguerridos, mas todos com microfone em punho.
No fim de contas, Portugal sai destas eleições mais colorido, mais barulhento e mais imprevisível. Um tripé não é tão estável como um par de pernas bem firmes, mas pelo menos aguenta a câmara. Agora, resta saber que filme vamos gravar: uma comédia de costumes, uma tragédia política, ou uma série sem fim. E, conhecendo a criatividade nacional, talvez seja uma mistura dos três.
E sim, Calimero, o mundo é injusto. Mas não é por isso que se pára de votar. Pelo contrário. Até porque, com o novo Parlamento, o espectáculo está garantido. Tragam as pipocas e preparem-se para a próxima temporada — porque a política portuguesa, meus amigos, está cada vez mais parecida com uma série que ninguém quer admitir que segue religiosamente.