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Noite de baile português

Sábado à noite numa capital europeia. Uma rua estreita, carros de alta cilindrada estacionados anarquicamente, empoleirando os passeios de um lado e de outro. No vidro traseiro de um Audi branco rebaixado lê-se “Quim”, noutro, um BMW preto, há um autocolante com o emblema do Sporting meio rasgado e pelo vidro vê-se um leão em peluche. Um bairro aparentemente tranquilo. Só se ouve ao longe uma música latina qualquer.

‘Música chunga’, pensa um dos quatro jovens que agora chegam à sala, em casal.
– Quanto é a entrada?, pergunta a Ana, que vai à frente.
– Dez euros!, responde o caixa-porteiro, jovem, musculoso, careca, de tatuagem no braço, que se demora numa observação insidiosa ao rapaz africano do grupo.
Mas o Carlos não repara. Franze a testa ao olhar os cartazes amarelos que enchem a parede, ‘Grande Baile com Os Argonautas, actuacaõ espêcial do Rancho Planícies de Portugal, comes e bebes portuguezes, trás um amigo’. Apesar dos erros ortográficos, a mensagem passou, são pouco depois das nove da noite e a sala já está a abarrotar.
– Carla, emprestas-me dois euros? Só tenho um!
A Ana e o João procuram nos bolsos das calças de ganga e dos kispos.
– Toma, eu tenho!

Finalmente, o porteiro carimba-lhes a mão com um tampão invisível e entram na sala. É um grande salão, amplo, com dezenas de mesas, onde as pessoas conversam e riem, separadas do palco por três metros de pista, onde dançam pares de todas as idades. No palco, um pseudo-Elvis, de poupa gelificada à fitfies e jeans deslavados, assassinava – como se ainda fosse possível fazer pior – uma cantiga conhecida de escárnio e dor de corno, mais vulgarmente conhecida pela onomatopeia “pimba”. A música não está particularmente alta, mas sai distorcida nos velhos amplificadores.
– Como é que nos conseguiram convencer a vir a uma coisa destas?, pergunta o Carlos à namorada.
– Foi só mesmo para ver o Hugo e a Cristina!, responde a Carla. – Olha, estão além! Um casal trajado de rigor à antiga maneira minhota acena-lhes.
– Ficas muito sechy, assim, meu!, lança o João chegando perto do Hugo, e com ar de troça e compõe-lhe o colete.
– Põe-te quieto, não gozes!, avisa o pseudo-minhoto, que na realidade é de Mortágua, e afasta a mão do outro com uma sapatada.
– A que horas dançam ?, pergunta a Ana.
– Quando aqueles parolos pararem de tocar aquelas merdas!, diz o Hugo, com um esgar para o palco.
– Daqui a dez minutos, mais ou menos, informa a Cristina.

Do bar vem um burburinho que lhes chama a atenção.
– Uma quê, caralho? Foda-se, não oiço nada!, grita o baixote, gordo, bigodudo, quase careca, a dois metros deles, agarrando com duas mãos o telemóvel que tinha tocado numa melodia de chinfrim nokiana, para ver se conseguia ouvir melhor, apesar da música alta. De repente, o baixinho cala-se, fica de rosto lívido e bigode pendente. Quando desliga o telemóvel, uma das mulheres do bar pergunta: – Tá tudo bem? O que é que se passa, Manel?
O Manel chega-se à mulher e sussura-lhe qualquer coisa ao ouvido e esta fica visivelmente aflita.
– Mas, temos que… , deixa escapar.
– Nãoooo!, ordena o baixote e acrescenta qualquer coisa que o grupo de jovens não ouve, apenas distinguindo depois claramente a palavra ‘Polícia’.
A mulher chama uma das miúdas que está a ajudar no bar e segreda-lhe também qualquer coisa e desparece pela porta da cozinha.
-Pronto, já sabia, já há molho. Estes bailes portugueses são sempre a mesma coisa, há sempre porrada e aparece sempre a bófia. Devíamos pôr-mo-nos a andar daqui. Detesto confusões, diz o Carlos.
– Estamos quase a actuar. Não vieram para nos ver?, tenta acalmar a Cristina.
– Pois é, Carlos. Eu cá acho é que estás com medo da parte em que eles vêm buscar gente ao público para dançar. Ainda pagava para ter ver dançar folclore, brinca a Ana.
– Eu também!, desafia a Carla e o namorado pelo braço até ao bar. A Ana e a Cristina seguem-nos. O Hugo e o João ficam para trás.
– Percebeste o que se passa?
– Não consegui ouvir tudo. Mas parece-me que não é nada de bom…
– As coisas do costume nos bailes portugueses. Não ligues e fiquem mais um pouco, vá lá!

Passados alguns minutos, dois polícias, boina negra, camisa azul bebé e risca branca nas calças pretas, entram na sala, sem conseguirem ser discretos. A testa alta e a cara de poucos amigos mostra que não se sentem intimidados pela música numa língua que claramente não entendem. Todos os olhares os seguem. Os agentes olha brevemente para toda a sala e dirigem-se em direcção do nosso grupo de jovens. Passam por eles sem os ver sequer e detêm-se diante do baixinho, que começa a gesticular e a encolher os ombros, visivelmente zangado.
-Vamos evacuar a sala e já!, ordenou um dos polícias, suficientemente alto para que os jovens se entreolhassem atónitos. O baixinho ainda tentou dizer qualquer coisa, mas os dois agentes acenaram negativamente com a cabeça. Pouco depois, o senhor Manel, subia despeitado até ao palco e pedia ao grupo para interromper a actuação. Quase arrancou o microfone ao cantor. A música parou.
– Senhoras e senhores, lamento informá-los, mas é preciso evacuar a sala por uns minutinhos, há um problema no …heu… sistema de ventilação, a Polícia vai proceder a uma rápida olhadela e depois a festa continua. Não se vão embora., disse numa quase súplica.
O movimento do público a caminho da saída anda demorou, como se as pessoas não quisessem, algumas chateadas começaram a assobiar, pais com crianças a dormir ao colo a resmugar, os bêbados não querendo largar o bar, mas bom grado, mau grado, todos foram pegando nas suas coisas e saindo.

-É uma bomba!, gritou então alguém e aí a multidão entrou em pânico e desatou a fugir portas fora, aos gritos, atropelando-se. Os seis jovens seguiram a turba, tentando não se perder de vista. O Hugo pegou a Cristina pela mão e puxou-a mergulhando na confusão dos braços e troncos que tentavam sair pela porta estreita. Cristina viu uma rapazinho pequenino caido mas não consegiu chegar até ele para lhe pegar pela mão. Foi uma loucura.

Quando os jovens chegaram cá fora, uma multidão engordava junto à sala e ocupava a rua toda. Algumas pessoas tinham corrido até aos seus automóveis e zarpavam com os pneus a chiar. Mas muitos outros tinham-se simplesmente concentrado em frente à sala e pareciam esperar algo. Entretanto, dois outros carros-patrulha tinham chegado ao local e dois agentes da brigada de Minas e Armadilhas entravam já com fatos de protecção e uma maleta negra na sala agora deserta.

– Achas que é mesmo uma bomba, Hugo?, perguntou com voz trémula a Cristina.
– Não sei, acho que não foi nada de grave, vais ver!, e abraçou-a.

Passados cerca de um quarto de hora, e enquanto alguns agentes tentavam em vão dispersar a multidão e outros canalizar o trânsito dos carros que queriam sair dali, havia agora pessoas do bairro que tinham acorrido ao local.

-Hugo, Cristina, nós vamos bazar!, disse o Carlos, segurando a mão da Carla. A Ana e o João pareciam de acordo. O grupo ia começar a seguir em direcção aos carros quando viram quatro agentes e o senhor Manel a sair da sala. Este último vinha com um lenço na mão e tinha a testa e o queixo encharcados em suor. Estava visivelmente perturbado. Mas pelos gestos dos policias percebia-se que não tinham encontrado nada de suspeito.

O senhor Manel dirigiu-se à multidão.
– Podem voltar a entrar. Tá tudo bem! Não foi nada. O baile vai continuar.
As pessoas, um pouco relutantes, começaram a aproximar-se do senhor Manel e da entrada da sala, mais por curiosidade do que propriamente com vontade de entrar.
De repente, o senhor Manel desatou a correr furioso pela rua fora de mãos no ar, em direcção aos jovens. Quando passou por eles, os olhos pareciam querer saltar-lhes das órbitas.
-Deu-lhe uma coisinha ruim, o velho passou-se!, disse o Hugo, e a multidão boquiaberta assistia, sem perceber. Os agentes da polícia também não e mantinham-se especados a meio-caminho dos seus carros-patrulha.
-Filha da puta, meu cabrão, pulha! Foste tu, meu filho de uma porca sem rabo. Vou dar-te cabo do canastro!, vociferava e ameaçava o senhor Manel. E nisto, num força hercúlea, pegou numa daquelas chapas de sinalização que indicava que a rua estava em obras, e espetou-a no pára-brisas de um Mercedes estacionado, e que parecia não ter ninguém.
– Saí cá para fora se és homem, meu canalha !
A multidão, os jovens, os polícias, incrédulos, não se mexiam e pareciam ver o desenrolar de um filme.
O mais espantoso é que de dentro do Mercedes saiu um segundo bigodudo, mais alto e mais magro que o primeiro, e sem dar tempo a ninguém de reagir, já tinha mandado um murro na cara do senhor Manel. Um segundo depois estavam os dois rebolando no chão, aos murros e à chapada.
Enquanto os agentes intervinham e os separavam, a multidão aproximou-se da ‘arena’. Na confusão das mãos, um agente levou uma bofetada do senhor Manel, que lhe projectou a boina a dois metros. As algemas saíram, os bigodudos ficaram imobilizados e o público a pedir por mais.
Apesar de algemado, o senhor Manel continuava a vociferar e gesticular na direcção do outro.
-Senhor agente, foi ele, o falso alerta à bomba foi ele. Foi aquele palhaço, aquele canalha. Só para me estragar a festa! E depois ainda vem para aqui para se pôr a ver o espectáculo. Malvado, pulha, invejoso, bandido, terrorista. És mesmo ruim…
Os agentes enfiaram os dois nos carros-patrulha, ordenou que a multidão dispersasse e a festa acabou mesmo ali. Os jovens levaram ainda meia-hora para conseguir sair daquela confusão com o carro. Já a caminho do bar onde combinaram encontrar-se com o Hugo e com a Cristina, foi o Carlos que resumiu a noite:
– Mais uma noite bem passada num baile português.

JLC
(in “Os Cadernos do Gaspar, vol 1.)

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