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Negacionismo à la carte

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O novo negacionismo eleitoral de São Bento parece ter importado a fobia digital de Brasília, quando em 2022 ecoava: Sem voto impresso, não tem eleição

O Parlamento aprovou na passada semana um projeto-piloto para o voto eletrónico destinado aos emigrantes portugueses. Uma boa notícia para as comunidades portuguesas, não estivesse este condenado à nascença pelo novo negacionismo eleitoral que destropicaliza, de fato e gravata, o obscurantismo bolsonarista do voto eletrónico de 2022. Num país onde a modernização deveria ser o alicerce de uma democracia inclusiva, é surpreendente o disciplantismo dos “novos-velhos” protagonistas para manter tudo, exatamente, na mesma. O espanto burlesco, ou nem tanto (visto bem de perto), é o upload de consciência dos que em 2022 se preocupavam – em carta aberta – com a “retórica perigosa” que minava a integridade da democracia brasileira, defendendo agora o seu contrário para a democracia portuguesa. 

Numa decisão que destropicaliza a lógica, o Partido Socialista votou contra este projeto-piloto de voto eletrónico para os emigrantes, recusando à partida as conclusões não retiradas. A cena, se não fosse trágica, seria digna de um capítulo de “As Farpas: burocratas de gabinete, amanuenses do quotidiano, agarrados a um passado feito de papelada, selos e assinaturas de tinta esmaecida.” Afinal, em Portugal o negacionismo eleitoral é muito mais civilizado e justificável do que o negacionismo eleitoral no Brasil – nem se compara, claro está. 

A digitalização do voto não é um capricho futurista nem um devaneio tecnocrático. Seja a Multicert, do grupo SIBS, que garante a segurança do Cartão de Cidadão, assinaturas digitais e certificados eletrónicos, ou a Extreme Solutions que presta serviços a ordens profissionais diversas com sistemas de voto eletrónico auditável – o mérito não está na tecnologia, mas sim na arte de destropicalizar a nostalgia do papel com um novo negacionismo à la Carte. 

Se a tecnologia é boa para proteger a segurança da nossa identidade e processos administrativos de alta sensibilidade, que argumento resta para negar aos emigrantes portugueses um sistema moderno e acessível de voto? Em Portugal, a cautela política mascara-se de prudência, e o imobilismo veste-se de sensatez. Somos um país que ama o progresso na teoria e o teme na prática.

Eça, em O Mandarim, desenhou com um traço implacável este tipo de alma(s): “criaturas submersas nos seus papéis, reduzidas a uma existência de formalismos e carimbos, encarquilhadas num mundo que apenas entendem porque o reproduzem.” E assim segue o nosso Parlamento, um Teatro de São Carlos de conveniências, onde o progresso não se impõe pela sua evidência, mas pela seletividade dos interesses certos. E que maior interesse senão o da própria subsistência?

Eça, há poucas semanas justamente elevado pela pátria, teria um festim com esta contradição, como teve com os mandarins, os condes da província e os democratas de palanque que, em seu tempo, prometiam revoluções sem mover uma cadeira. Há algo de profundamente medieval nesta relutância em abandonar os rituais da caneta de tinta permanente e da urna de madeira. Como se a democracia fosse um museu e não uma construção viva. Como se inovar fosse uma heresia e não uma necessidade.

Ao rejeitar a digitalização do voto, os partidos votam pela não inclusão – ponto final. Optam pela velhice do sistema (que bem se entende), pela morosidade da burocracia e pela ausência dos que, com sacrifício, poderiam estar presentes. O receio do progresso, ou talvez a comodidade de manter as coisas como estão, condena milhares de emigrantes, como eu próprio, a um não exercício de cidadania imposto pela distância e pela negligência institucional – em plena era digital. 

Resta-nos a pergunta inevitável: queremos perpetuar uma democracia enfeitada de velharias, ou ousamos colocá-la em sintonia com o século XXI? 

Se nada acontecer, continuaremos a dançar o samba desafinado entre novos-velhos e amanuenses sem papel, num palco onde os eleitores não passam de figurantes. E nesse teatro de sombras, a democracia, que deveria ser um banquete vibrante, acaba reduzida a um ritual mofado, onde o progresso nunca passa de uma promessa por cumprir.

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