– Diz-me, como pode alguém apaixonar-se vezes sem conta?
– Amar não se explica, acontece e pronto.
– Pois bem, se te apaixonas vezes sem conta e pensas amar, digo pensas amar, é unicamente porque nunca te amaste a ti mesmo e ainda não sabes quem és. Procuras a felicidade num outro ser, quando ela, a felicidade, está dentro de ti. Amar é coisa rara.
– Tens razão e não tens. Tens de amar-te primeiro para amar o outro verdadeiramente. O amor acontece todos os dias. Mas sim, também é raro. É raro, porque não acontece com toda a gente e porque as pessoas não lhe dão valor todos os dias. E não lhe dão valor porque não se conhecem nem se amam a si mesmas o suficiente todos os dias. E é assim que não reconhecem o amor quando ele acontece. Todos os dias.
– As pessoas não o reconhecem também porque já não acreditam no amor.
– Sim, é verdade. Há pessoas que já não acreditam ou decidiram não querer mais acreditar no amor.
– E depois há os que acreditam no amor em qualquer circunstância e confundem a ilusão de um momento, a excitação de conhecer alguém novo, com amor.
– Sim, mas por vezes é assim mesmo, uma excitação, um rastilho, uma deflagração…
– Isso é desejo, que pode conduzir à paixão, à obsessão, e sim, também ao amor. Mas o amor é sempre algo que se constrói no tempo. Juntos. Porque na vida podemos gostar de várias pessoas, mas amar, só uma. Porque o amor é entrega mútua, é confiança, é partilha. E é recíproco, se não é recíproco não é amor! É outra coisa qualquer, desejo, paixão, obsessão.
– Sim, talvez, mas não sei se acredito nisso de se amar apenas uma vez na vida.
– Talvez possas amar mais vezes. Mas continua a ser raro. E para os que acreditam no amor a qualquer custo, como tu, saber detetar entre o amor e uma mera ilusão também é importante.
– Importante? Porquê? Tudo é ou deveria ser sempre amor. Se em tudo o que fazes és verdadeiro, então isso é amor. E se é o amor que te transporta, porque é importante saber detetar o que não é amor?
– É importante para te protegeres, para não sofreres.
– Dar-se ao amor é isso, um salto no vazio. É sempre um salto no vazio.
– Pois, e podes cair. De muito alto.
– Se não for alto, não vale a pena… Mas, e se voares?
– Voar? É tão raro!
– Claro que é. Mas, por isso mesmo vale a pena arriscar.
– Depende da espessura da tua pele e se resistes às quedas… a tantas quedas! Quantas quedas?
– Não te arrependas de dar, se a dádiva é genuína e desinteressada. Quem não aceita é quem perde.
– Se dás sem receber, perdes sempre um pouco de ti. Perdes um pouco da tua alma e aos poucos deixas de ser quem és.
– Deixas de ser quem és para te tornares… melhor.
– Ou não. Depende de como geres essa recusa do amor.
– Claro, e isso depende de como te amas. É preciso amar-se primeiro, para poder amar o outro. E quando nos amamos, a alma é mais forte, a pele é mais dura, e está mais pronta para as quedas.
– O amor tem que ser sempre queda? Fall in love, tomber amoureux…
– Não é queda, é voo!
– Há pois… e quando não há paraquedas?
– É sempre sem paraquedas. Mas sempre com copiloto! Com paraquedas, não é amor! É um contrato a prazo assinado por duas partes concordantes.
– Lol. Estás a descrever o casamento?
– Não, estou a descrever o amor. E a vida. Quando acordas de manhã não sabes o que vai ser o teu dia, nem o dia de amanhã. Se sabes, então não é a vida. É agenda, é mera existência. A vida não é programada, é descoberta, é deslumbramento, é deixar-se maravilhar a cada instante. Assim é também o amor.
– Quase me convenceste.
– Quase? Faltou o quê?
– Faltou a prova dos nove.
– Ah, mas isso, só com a prática. E a prática vem com o voo.
– Lá estás tu…
– Então, vens voar?
– Só tu para me convenceres nesta loucura!
– Claro!
BVJLC20182020
*A frase do título é extraída do livro “Perto do Coração Selvagem” (1943), de Clarice Lispector