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Mas afinal… o que é ser português lá fora?

© DR

Tínhamos acabado de jantar.

O primo Gervásio palitava agora os dentes com um ar de satisfação. Gesto que me irrita à brava, porque no caso do Gervásio, palitar os dentes depois do jantar, significa prolongar imenso as conversas, não porque lhes adicione mais conteúdo, mas porque, no que quer que diga, faz pausas quase intermináveis enquanto tenta libertar as farpas do bacalhau que lhe ficam entaladas entre dentes.

Como se isso não bastasse, à medida que consegue a proeza de trazer à ponta da língua a eventual farpa, levanta um pouco da mão que fechou em concha ao encobrir o palito, e cospe-a sem olhar em que direção esta irá.

Movo-me inquieto, na cadeira, sempre que ele o faz, pois não podendo seguir a farpa, para ver onde ela aterra, invade-me um receio e um nervoso miudinho só em pensar que a mesma possa ir direta à cara de alguém que janta nas proximidades da nossa mesa. Ou pior ainda, se é que se pode considerar pior do que levar com uma farpa de bacalhau vinda diretamente da boca do vizinho do lado, esta cair no prato do infeliz, que porventura até, está deliciado com o seu jantar.

Finalmente diz:

Mas… afinal…

E faz nova e demorada pausa porque agora está a contas com uma farpa mais teimosa, e eu apercebo-me disso porque, suspenso na frase que iniciou, vai entortando os queixos ao mesmo tempo que faz um grunhido com a garganta, e a mão que segurava o palito, encoberta pela mão que em concha a esconde, parece ter um movimento mais frenético.

O esforço deu os seus resultados. Gervásio conseguiu libertar a farpa dos seus dentes carcereiros.

Obviamente, cuspiu-a.

Mas afinal… o que é ser português, lá fora? – Concluiu

Bebi o meu café de uma assentada. Era o meu primeiro dia de férias, acabado de chegar de terras de sua majestade.

Entusiasmado pelo coice da cafeina, deste que me parece o melhor café do mundo, tomado em Portugal obviamente, respondi,

“Lá fora, onde? No quintal?

Gervásio não esboçou um sorriso sequer.  Lá do alto dos seus olhinhos piscos, lançou-me um olhar fulminador.

Então… eu disse.

“Bem… ser português, lá fora é ser profundo conhecedor do significado da palavra saudade.

É saber esconder uma profunda tristeza por detrás de um sorriso.

É ter um enorme receio de atender uma chamada de Portugal a horas inesperadas.

É ligar para casa dos pais, e nos segundos que antecedem a chamada que vai ser atendida, sentir um aperto no peito, uma ansiedade que logo desaparece se a voz que do outro lado responde, corresponde ao tom que nos faz acalmar essa mesma ansiedade.

É sentir com muito mais intensidade como o tempo passa, e com ele fica a dor da ausência dos momentos que se perdem com os que tanto amamos, sentindo que os benefícios da distância, pois por eles emigramos, têm um preço duro a ser pago.

Mas também é a adrenalina da aventura. Da conquista do desconhecido. Do desafio da adaptação. Da satisfação de transpor barreiras, ultrapassar obstáculos. De espalhar as raízes em solo novo e remar contra a maré, até que elas voltem a agarrar a terra e cresçam e possam dar os seus frutos.

E é sempre a saudade.

E é o orgulho patriótico de ser português. E é sentir mais intenso, mais apaixonado esse orgulho, que por vezes nos dá alegrias com a mesma intensidade com que nos dá tristezas.

É olhar o nosso povo e a nós mesmos, pelo lado de fora do nosso cantinho à beira-mar plantado, e querer meter num mesmo abraço todos aqueles que são simples de coração e grandes na sua maneira única de ser, e apertá-los junto ao peito, para que também eles possam sentir o quanto os amamos.

É achar a bandeira portuguesa, a mais bonita do mundo.

É fazer uma viagem de centenas de quilómetros e ao ver a placa que diz “Portugal – 1 Km, cair num silêncio ensurdecedor, e para disfarçar a emoção que quase nos trai com umas lágrimas que são alegria também, afirmar que esta placa é o monumento mais belo que Espanha tem.

É sair do avião, já em território português, e inalar o cheirinho a Portugal, que só nós, os que estamos lá fora, sabemos que paira pelo ar como um perfume que nos devolve às origens, à alma unicamente portuguesa.

E é sempre a saudade.

É partilhar, e não dividir, o coração com alma lusitana, e o país de acolhimento.

É desejar veemente pela chegada das férias, e quando elas chegam, à medida que se vai matando saudades com a família, os amigos, e alguns conhecidos curiosos de saber…” e então, como é ser português, lá fora?”, e os lugares que continuam a nos encantar, os sítios que nos trazem, felizes e ao mesmo tempo nostálgicas recordações e, sentir este quase estranho desejo de regressar ao país que nos acolheu, ao país onde somos estrangeiros, emigrantes, portugueses lá fora, mesmo sabendo que, na hora da despedida, no adeus até ao meu regresso, se vai dar aquele aperto no peito, um sufoco na garganta, e umas lágrimas que se não podem evitar.

E é ver os filhos a crescer, neste que agora é também o nosso país, e aceitar com naturalidade que eles criem as raízes no país onde vivem, da mesma maneira que nós criamos as nossas no país de onde viemos, não descurando nunca a missão de lhes ensinar a amar as suas origens, a respeitar e a mantê-las vivas.

E tinha ainda muito mais para dizer. Falar por exemplo, dos fanfarrões, daqueles que vêm ao burgo de férias com o peito inchado, a arrotar postas de pescada, a darem uma ideia errada de um paraíso que não existe, porque a vida não é fácil em canto nenhum do planeta, e aqui como ali, viver requer sacrifícios, conquistas e derrotas, persistência acima de tudo.

Também podia falar dos mexericos, dos ciúmes, das pequenas traições e cobardias entre portuguesas na mesma comunidade.

Mas nisso, estaria a ser injusto, porque o problema não é o de ser-se português, mas sim, a nossa natureza humana. Destes mesmos mexericos, ciúmes, pequenas traições e cobardias assisti eu a elas com Filipinos, Polacos, Franceses, Espanhóis, Italianos.

Há de haver um nome científico para este fenómeno ciumoso entre cidadãos da mesma nacionalidade a viver e trabalhar no estrangeiro. Como alguém disse…” I want you to do well, but not better than me…”

O primo Gervásio estava agora mais descontraído. Recostado na sua cadeira, entretinha-se a passar o palito de um canto da boca para o outro, numa acrobacia de lábios e língua apenas. As mãos pousadas na mesa, os olhos piscos em cima das minhas palavras.

Mexeu o rabo na cadeira, coçou a testa e disse,

“Nhaaa…são emoções muito fortes para mim…Estou muito bem ca na terra…”

António Magalhães

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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