De que está à procura ?

Colunistas

Há lobos na cidade

© DR

(continuação)

Sempre que tinha uns trocos ia ao cinema, ao futebol e comprava livros. Três companheiros sem os quais a minha vida teria sido um verdadeiro desastre. Os livros que comprava eram de edições populares, mas de autores consagrados e muito talentosos. Tinham um aspeto simplório, mas assim que pude, mandei-os encadernar com lombada em pele e letras douradas, tão grato que fiquei às leituras que me veicularam. 

Lisboa era considerada uma cidade de novas oportunidades, mas comigo mostrou pouca generosidade. Devo ter nascido com uma sina de lugar de atendimento eterno para melhores dias. 

Um dia fui chamado para o exército. Na tropa continuei a sentir-me um Zé mais que ninguém mas tive a sorte de estarmos em tempo de paz, uma paz podre, é certo.  Felizmente, como soldado pude aceder a uma das minhas grandes paixões, a condução de veículos automóveis. Como demonstração de reconhecimento pelas minhas habilidades de condutor, deram-me um general como passageiro. Não me assustei com a patente nem com os tiques das suas farpelas decoradas com medalhas de louvores vários. Apesar das condecorações não era altivo, cumprimentava-me sempre que o ia buscar de manhã e, quase sempre, se lembrava de me mandar almoçar quando adivinhava um compromisso mais demorado.

Depois da tropa já não foi possível voltar para a mercearia. Conduzir era o que queria fazer. Comecei um novo capítulo de vida, trabalho duro, mas ainda assim, sobre rodas. Como motorista de táxi conheci muita gente, de muita qualidade e tamanho e guardo na memória muitas histórias engraçadas, outras nem por isso.

Os dias, entretanto, começaram a ser demasiado longos e as noites cada vez mais solitárias e admiti sem pudores o quanto precisava de alguém que partilhasse a minha vida e cuidasse de mim. Eu nem sabia muito bem o que isso era, nunca tinha sido motivo de ocupação a tempo inteiro para ninguém!

Um dia apaixonei-me por uns olhos esquivos e amendoados. E enquanto não os conquistei não descansei. Foi complicado, ela sonhava com um príncipe qualquer, vindo diretamente dos seus sonhos de menina e queria lá saber de um desajeitado e sem vintém como eu… 

A minha alma casou alegre e apaixonada. Ia finalmente ter um lar, algo que até aí me tinha sido sempre negado. Imaginava-me a comer refeições saborosas e a horas, roupa a cheirar a lavado…. Imaginava o seu abraço meigo a rodear-me e a aliviar-me de um dia duro de trabalho. 

Mana, sou pai! Nasceu-te uma sobrinha linda, tens de vir vê-la. Foi assim que anunciei o nascimento da primeira filha à minha irmã. Tinha saído há pouco da Maternidade e não me contive, fui direto a uma cabine telefónica. À época, a minha irmã vivia na aldeia, depois de ter dado voltas a meio Portugal tinha voltado a viver com a mãe.

Na minha aldeia só havia um telefone e era público. Com esta privacidade pode bem imaginar-se que a notícia, embora dada pelo telefone aos ouvidos de uma pessoa, é como se fosse expandida por obra e graça de um espírito qualquer por todas as casas e casebres circundantes. Toda a gente ficou a saber da menina e nesse dia houve com certeza almas bondosas (ou nem tanto) que rezaram pelo seu futuro. 

Quanto a mim, parecia que estava nas nuvens, aquela bebé era minha filha, tinha conseguido fazer aquele ser, como era possível? E agora, como é que ia ser, estaria eu à altura de ser o pai que ela precisava? Fiquei cheio de dúvidas e receios a invadirem a minha cabeça estonteada. Nesse dia, ganhei um novo medo, para sempre. Medo duplicado aquando do nascimento da minha segunda criança, o medo de as ver sofrer e não ser capaz de o impedir.

Embora os primeiros anos de casamento tenham sido sempre curtos de dinheiro, foram os melhores anos da nossa vida de casal. Com o nascimento da primeira criança as dificuldades aumentaram um pouco mas conseguíamos ver tudo com otimismo, iluminados pelo seu sorriso doce e olhinhos cintilantes. Quando nasceu a nossa segunda criança, tornou-se urgente uma mudança. Precisávamos imperativamente de privacidade e mais espaço para vivermos só entre nós.

Para comprar uma casa tive de me endividar até à raiz dos cabelos, deve ser por isso que fiquei careca muito cedo! O trabalho de motorista não era suficiente para pagar as dívidas e os nossos gastos diários, assim, não tive outro remédio senão emigrar.

Fui de comboio para a Alemanha, em 3ª classe, sentado nuns bancos rijos como cornos que me martirizaram o corpinho durante uma eternidade. Levava comigo uma mala de mão, que não era de cartão, mas estava muito velha. Fui sem contrato de trabalho, com um papel na carteira onde tinha anotado o nome de um tipo que um amigo me tinha dado, e era tudo. Levei também alguns marcos para os primeiros dias e um bloco de notas com algumas palavras para os primeiros contactos. Já sabia de cor duas palavras: Ya e nein. “Talvez” ainda não sabia dizer, mas era uma palavra que tinha estado demasiado presente na minha vida. Agora que dava o salto para outro país, queria deixar os “talvez” de lado o mais possível.

Os primeiros anos foram duros, o trabalho era muito físico; muitas pedras que calçam os passeios da cidade de Colónia fui eu que carreguei e coloquei! E ainda hoje tenho presente a sensação de frio que acompanhava os invernos. Era ainda mais persistente e cruel que o frio que deslizava da serra para a minha aldeia. 

Felizmente, encontrei companheiros nas mesmas condições e que partilharam comigo muitos momentos, ajudando a abrandar os dias e amenizar as noites. Aproveitei também para melhorar os meus conhecimentos linguísticos. Não é como se diz agora? Entre o alemão à força e à pressa, numas aulas organizadas para estrangeiros no sindicato, mais as saídas ao fim de semana com os companheiros de labuta – no meio das rodadas de cerveja havia muitas canecas que falavam espanhol, outras italiano e algumas, cada vez menos reticentes, alemão -aprendi a falar com alguma fluência, três línguas estrangeiras.

Hoje também sinto saudades da minha Colónia, é assim que a menciono sempre, pois apesar de não me ter acolhido de braços abertos, gostei dela assim que a vi.

O que doía mais eram as saudades da família. Por vezes, à noite, imerso no silêncio à espera do sono, pensava nas minhas filhas e em toda a infância que não partilhava com elas. Sentia-me muito só, de uma solidão assoada e persistente. Um ano são 365 dias e eu passava grande parte desses dias a pensar na alegria do reencontro nas férias do Verão que eram de um mês. Nesse mês de férias, passava o tempo todo com as meninas, visitava familiares, lugares bonitos, íamos ao cinema, à praia… tentava condensar num tão curto espaço de tempo tudo o que deveria ter partilhado durante o ano.

Quando chegava o Natal, a saudade da família alastrava ainda mais dentro de mim. Entretinha-a a escolher presentes e cartas postais que depois escrevia sozinho no meu quarto. Mas esses brinquedos que escolhia para elas e que seriam admirados e manuseados pelas suas mãozinhas, não me davam nenhum consolo, pois continuava a sentir a falta dos seus sorrisos e da seda dos seus cabelos.

E, entretanto, sem que me apercebesse, passou um verão e a seguir outro, e nesta sequência numérico/existencial passaram-se 13 anos. Um dia acordei com estes anos transformados em pesada herança, tanto para mim como para a minha família. O forte sentimento de urgência em recuperar o meu lugar no seio dos seres que mais amava não me deixou sossegar.

Uma manhã não aguentei mais e em vez de voltar ao quotidiano que me acompanhava há mais de uma década, arrumei as minhas coisas em malas e parti para casa como se fizesse um intervalo sem tempo. Sem me despedir de ninguém, deixando em suspenso uma situação que se tinha tornado insuportável. Parti com o sentimento de que já tinha visto tudo o que havia para ver, corrido o que havia para correr e só queria voltar à base e sossegar o espírito. Tinha chegado à triste conclusão de que o progresso, embora mais evidente e real que o do nosso retângulo plantado à beira-mar, estava longe de ser perfeito. Os vícios, os filhos da putice e tudo o que vem nesta linha de seguimento eram iguais em todo o lado, por esse planeta fora, onde houvesse gente, claro!

Paula Sá Carvalho
in TEMPO EXTRA, Poética edições

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA