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Escrever o futuro através da literatura

Avançamos a passos largos para uma mudança socioeconómica a níveis ainda não documentados, uma nova era inaudita. Com todas as nossas seguranças abaladas por essa mudança, é apenas natural buscar algumas tábuas mais rijas com as quais construir uma jangada espiritual para fazer frente a essa tempestade que se avizinha. Por essa razão, podemos perguntar: irá o significado de Amor manter-se intacto nessa nova era? Ou deveremos começar a preparar-nos para uma redefinição daquilo que entendemos pelo conceito? Afinal, tudo passa pelo amor. E o amor de que escrevo é um amor de muitas caras: amor próprio, amor de mãe, amor de pai, amor de filho, amor romântico, amor pelo trabalho, amor pelo que vemos, amor pelo que ouvimos, amor pelo amor.

Mais do que procurar respostas a estas perguntas, é necessário encontrar caminhos possíveis para as compreender. A literatura, como velha forma de encontrar caminhos, é uma importante bússola nessa tarefa. O romance “Pode um desejo imenso” de Frederico Lourenço, romance que devorei de quase uma garfada, é um bom indicador do tipo de literatura que é necessária para fazer frente à questão do novo amor que o futuro nos poderá trazer. 

Frederico Lourenço é um académico português com um louvável trabalho crítico (as suas traduções de Homero e da Septuaginta são igualmente louváveis). Uma das suas facetas talvez menos conhecidas é a de romancista. O romance Pode um desejo imenso, publicado originalmente em três partes, foi agora reeditado pela Quetzal num único volume, motivo suficiente para ser ou revisitado ou, como no meu caso, descoberto. Na leitura frenética do livro de Frederico Lourenço, percebi que estava diante, para além de uma obra de qualidade literária inegável, de uma enorme consciência sobre aquela substância que reina entre o mundo físico e o mundo espiritual: o amor. Que melhor maneira de refletir acerca do amor senão lendo acerca dele?

Na minha experiência profissional, as lentas dores do amor são já sobejamente conhecidas e partilhadas. É apenas natural que, ao defrontar-me com o exímio tratamento que Frederico Lourenço concede ao tema, tenha ficado completamente cativada. Por essa razão, decidi trazer a esta crónica uma pequena reflexão acerca do que li, procurando talvez inspirar outras reflexões e leituras.

O mundo que Frederico Lourenço evoca é um espaço onde os leitores e leitoras compactuam com as personagens e as suas feridas e ansiedades. De certa forma, todos e todas nós somos espelhos e espelhos de espelhos das personagens Rosália e Helena, personagens cujo mundo interno está ancorado na tradição, no conservadorismo da crença de que o poder feminino se aloja no casamento, na maternidade, na aceitação de um lugar subalterno da mulher. É compreensível que assim seja: este é o velho mundo que deixamos agora para trás, o mundo dos nossos antepassados que temos de conhecer ainda que apenas para o abandonar.

Da mesma forma, somos todas e todos o Nuno, o Vicente e o Filipe, personagens enraizadas na normalidade, na estandardização do Eu, como se fossemos produtos em série constantemente marcados pelo rótulo de uma qualquer fábrica do mundo. Como esses personagens, todos e todas sentimos o apelo e o repúdio da promiscuidade que não serve outro propósito senão a sua própria existência. Como esses personagens, também nós seguimos as linhas do destino com um olho no receio das suas vicissitudes.

Todos os dias surge, nos nossos modos e pensamentos herdados desse velho mundo, mais uma fibra na Teia da nossa infelicidade comum. Automatizámos o amor de forma a proteger-nos. O casamento, pensámos nós, é um refúgio contra a solidão. O amor, julgámos, uma proteção contra nós próprios e próprias. Esquecemos assim a verdadeira essência do amor, a que já aludi no início desta crónica: a variedade.

Com afinco, escondemos debaixo do tapete as mil roupagens do amor, guardando apenas aquelas que todos e todas, como sociedade, confirmámos como normais, acreditando por isso que essa normalidade, tão falsa mas tão enganadoramente acolhedora, é mais verdadeira do que as mil maneiras de amar que tão sofregamente escondemos. Por culpa da normalidade que instituímos, deixámos de saber amar e de conhecer o amor, porque o deixámos incompleto. Aqueles que sofrem por amor, sofrem porque persistem em fiar a Teia e em pisar o tapete. Ficam assim a sentir-se pequenos, como que engolidos pelo mundo à sua volta, mas a sua pequenez não é mais do que uma ilusão. Na verdade, o espaço do amor de cada pessoa não tem medida. Tudo o que nos afasta da nossa felicidade é demasiado pequeno para nós: o amor não tem início, nem fim, e por isso nunca pode ser arrumado em alguma gaveta. Se tentamos viver um amor automatizado, encolhemo-nos e deformamo-nos, e por isso sentimos que somos pequenos. Se compreendermos que o espaço do nosso amor não é divisível, começaremos a viver mais felizes, longe de rótulos e julgamentos.

O romance de Frederico Lourenço, do qual pouco quero revelar para deixar aos seus futuros leitores a expectativa da novidade, é um bom começo para a restruturação de uma nova forma de ver o amor. Não é um manual, porque esse novo amor não pode ter um manual. A própria escrita do livro, dura, hermética, corajosamente literária, única a Frederico Lourenço, revela a chave do texto: nós próprios somos nós próprios, ninguém mais. A nossa voz, não a dessa Teia exigente e impessoal, ou desse pesado tapete onde arrumámos a diferença, é que deve traçar o caminho, de mãos dadas com o respeito por quem somos, por quem os outros são, pelo brilho interno e externo de cada um e cada uma, e com a crença num amor incondicional que não tem nome mas tem alma.

Leiam o romance de Frederico Lourenço. Abram as portas a esse novo amor. Como digo sempre, a palavra cura e os livros são o soro da alma.

Cristina Gomes

Lado Violeta

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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