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Crónicas da vida real: Clarinha

É tempo de admitir que és impotente perante a tua dependência e que por esse mesmo facto perdeste o domínio sobre a tua vida. Esse será o teu primeiro grande passo.

Dou-lhe um forte abraço e antes de a puxar com delicadeza e ao mesmo tempo firmeza, contra o meu peito, e de a envolver nesse abraço cheio de amizade e nenhumas más intenções, sinto o seu corpo magro e quase ossudo amortecer naquilo que de carne humana eu tenho a mais e ela a menos. Quando a aperto contra mim, para selar esse abraço amigo e solidário quase que lhe segredo ao ouvido, – Força Clarinha, as noites mais escuras produzem as estrelas mais brilhantes…

Depois, também ela num esforço quase bem-sucedido de braços envoltos no meu pescoço, os aperta com força e agradece-me as palavras, ao mesmo tempo que solta um sorriso rasgado, se não feliz, pelo menos satisfeito. E eu sei que o sorriso não é de felicidade porque a vida não lhe dá essa “colher de chá.” É um sorriso satisfeito porque adora quando lhe chamo Clarinha.

Sendo eu português de gema e ela inglesa born and bred, adora quando lhe transformo o nome Claire, para Clarinha.

Qualquer palavra latina onde se pronuncia um r parece produzir um efeito de grande satisfação a qualquer inglês. Clarinha, Pedro, porquê, praia, perlimpimpim… e se numa frase em inglês se puder introduzir aqui e ali uma ou outra palavra em que se possa carregar com força, matreira e propositadamente, em dois rr’s, então o êxtase parece ser quase garantido.

Exageros claro. Mas exageros baseados em factos verídicos.

Com a Claire fico-me por um r. Clarinha. O respeito e a amizade sincera que tenho por ela não me permite abusos de confiança. Mas gosto de lhe arrancar esse sorriso de satisfação, ela que de sorrisos tem andado tão escassa.

Clarinha é uma toxicodependente em recuperação. A recuperação tem momentos por vezes tão dolorosos quanto os momentos de degradação e destruição no consumo ativo. Dolorosos porque o corpo que durante anos andou a funcionar à base de uma substância da qual se tornou dependente, precisa de se readaptar, recompor, regenerar. Mas essa, apesar de ser uma tarefa complicada, só pelo facto de que até chegar a esse ponto se vai estendendo a vida de miséria, por vezes até ao mais baixo que humanamente se pode descer, nem sequer é a parte pior uma vez que hoje em dia, pelo menos no que respeita à dependência de opiáceos, mais propriamente a heroína, que é o caso da Clarinha, há medicação que ajuda o corpo a recuperar sem sofrimento, o que é um passo de gigante para quem se deixou, não interessa porque motivo, apanhar neste flagelo que mata, e que pior do que isso, antes de matar destrói, num prolongado sofrimento.

Não. O pior vem depois. O corpo reajustasse a si mesmo. Fá-lo-ia por si sem medicação, de maneira dolorosa, mas acabaria por se recompor. Com a medicação demora um pouco mais de tempo, mas evita-se a cem por cento o sofrimento, que durante muitos anos foi o motivo de muitos toxicodependentes se deixarem levar até ser tarde de mais, acabando por evitar o sofrimento de maneira eterna, com a morte. Nos dias de hoje não é preciso prolongar o sofrimento. É tempo de parar e começar a viver. Fisicamente o corpo recupera.

A parte pior vem a seguir. Reaprender a viver sem a substância da qual não se podia viver antes sem a consumir. Reentregar na sociedade. Preparar-se no dia a dia para os inesperados ataques de ansiedade e vontade de voltar aos velhos caminhos, mesmo sabendo que eles quase levaram à destruição. Está tudo na cabeça, dizem. Claro que sim. Mas que porra, a cabeça continua a ser a mesma, tão complexa e difícil de entender quanto era antes.

Digo à Clarinha: ”O problema não está nada na cabeça. O problema está em de uma vez por todas aprenderes a conhecer-te a ti mesma. Há duas Clarinhas num mesmo corpo. A Clarinha que se perde e se deixa enganar pelos seus próprios pensamentos e vontades, e a Clarinha que quer viver, que tem consciência que a vida assim não faz sentido. Não se vive, sobrevive-se. A recuperação passa a ser uma luta entre as duas Clarinhas. É tempo de te pores do lado da Clarinha que quer viver e que se recusa a apenas sobreviver. É tempo de admitir que és impotente perante a tua dependência e que por esse mesmo facto perdeste o domínio sobre a tua vida. Esse será o teu primeiro grande passo. O facto de muita gente não mudar a sua vida de miséria é a dificuldade que tem em admitir o obvio, e não admitindo também não faz nada para iniciar a mudança.”

Clarinha concorda comigo. Não precisava de mo dizer até porque esse primeiro passo já ela o deu, admitindo a sua impotência perante uma substância que domina a sua vida de maneira cruel e destruidora. Agora que o primeiro passo está dado é seguir em frente, com uma rede de opções onde a ajuda mutua de quem se compreende melhor do que ninguém, se ajuda mutuamente a seguir o caminho da vida, com momentos melhores e momentos piores, mas sempre limpos.

Sugiro-lhe, entre outras coisas, a meditação. Mergulhar dentro de si num escuro vazio de qualquer pensamento, apenas uma viagem no nada, no vazio, onde, com muita prática, muita insistência, uma força mais poderosa do que nós mesmos nos espera para nos mostrar quem realmente somos, e como devemos palmilhar o difícil, por vezes tortuoso, caminho da vida.

E que raio, eu que fui educado numa tradição católica, nem sequer me lembro quando foi a última vez que fui à missa, e, no entanto, sinto que Deus está no meu afeto por quem sofre, no abraço puro e cheio de amizade que dou a quem mais precisa dele. Dou-o, porque só podemos reter connosco o que somos capazes de dar. Deus está na amizade, no afeto que sentimos uns pelos outros, na entreajuda, num abraço.

Milhares de velas podem ser acesas de uma única vela e a vida da vela não será encurtada. Felicidade nunca diminui por ser compartilhada (Buddha)

Não adianta chorar pelo passado porque esse… foi-se. Preocuparmo-nos de mais pelo futuro…? Ainda não chegou. Por isso, viver no presente e fazê-lo belo, gracioso, maravilhoso, parece-me a opção mais lógica e com mais sentido. Viver entre o passado e o futuro é esquecer o presente, é não viver.

Não digo nada à Clarinha, mas ao olhar para ela lembro-me sempre da parábola do filho pródigo. O filho que andava perdido e que voltou a casa de seu pai. Mais do que o que ficou e que sempre esteve ao lado do pai e nunca o abandonou, o que mais precisa de uma festa de alegria por voltar ao caminho da vida, é sem dúvida o que andava perdido e encontrou esse caminho. Não menosprezando obviamente o que sempre esteve. Ajuda-se quem precisa.

E eu, tenho esse abraço puro e sincero, para a Clarinha que é um montão de pessoas com quem me cruzo e a quem, ofereço a minha amizade e o meu apoio, a única maneira que tenho de também eu caminhar em direção à luz na qual acredito (…)

(Excerto de Crónicas da vida real)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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