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Caíto Marcondes: a inquietude de um artista

Nascido no Rio de Janeiro, mas criado em Taubaté, no interior de São Paulo, Caíto Marcondes desde a infância deixou-se fascinar pela magia dos sons. Sobrinho de Geny Marcondes e Hans Joachin Koellreutter, duas legendas da música brasileira no século XX, pensou em ser arquiteto, mas o desejo de tornar-se músico falou mais alto, ainda nos primeiros anos do curso de arquitetura, na Universidade de São Paulo. Daqueles tempos até hoje, são mais de 40 anos e seu nome tem corrido o mundo como compositor, arranjador, percussionista e produtor.

Quando a descoberta da música?

Os sons sempre me despertaram interesse, desde muito pequeno. A algaravia do material de cozinha, o canto dos pássaros, o sussurro das folhas das palmeiras, o apito do trem ao longe, os cascos dos cavalos no calçamento de paralelepípedos e, mais tarde, a música dos bailes, no clube da cidade do interior onde eu morava, trazidos pelo vento, à noite, através da minha janela. Um pouco mais graúdo, eu ia passar as férias de verão na casa de minha tia Geny, no Rio de Janeiro, e lá tive contato com um seleto grupo de músicos, tais como Koellreutter (seu marido, na época), Turíbio Santos, Baden Powell e por aí afora, que frequentavam a casa dela. Lembro-me, sobretudo, da polirritmia, originada pelas rodas do trem, nas emendas dos trilhos. Foi quando a percussão começou a se instalar dentro de mim.

Ser sobrinho de dois músicos legendários, como Geny Marcondes e Hans Joachin Koellreuter, foi decisivo para que deixasse a arquitetura e se tornasse músico? Pode nos contar um pouco sobre sua convivência com eles?

Na verdade, eu sempre me considerei músico. Aos oito anos, comecei a estudar piano, no conservatório local, depois violão e, em seguida, bateria. Morei em Taubaté até os 17 anos e meu irmão, hoje cirurgião plástico, tinha um conjunto de baile, cujos ensaios eram na garagem de nossa casa. A bateria já me fascinava e de vez em quando, durante os intervalos, eu dava uma canjinha. Meus pais montaram uma sala de música em casa, munida de bateria, órgão e guitarras. Eu tocava um pouco de cada um e cheguei a formar meu próprio conjunto. Minha tia Geny vinha nos visitar de tempos em tempos e me passava algumas dicas de harmonia no teclado. Mas tudo de maneira muito informal. Quando tive que optar por uma faculdade, escolhi arquitetura, pois a minha experiência com a abordagem acadêmica da música, no conservatório onde estudei piano, não havia me deixado boa impressão. Portanto, eu não quis submeter a minha paixão maior a um estudo formal. Além do mais, eu gostava muito de desenhar e de marcenaria. A arquitetura, então, me pareceu uma opção interessante. Prestei vestibular na USP (Universidade de São Paulo) e entrei na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), aos 17 anos. Em São Paulo, passei a fazer o curso e me envolvi com outros músicos, formando minhas primeiras bandas. Estava cursando o segundo ano da FAU, quando um amigo, baterista, o Zé Eduardo Nazário, que tocava com o Hermeto Paschoal, me convidou para participar de um ensaio com ele. Ao final desse ensaio, o Hermeto me convidou para integrar a banda, na qual permaneci durante um ano, realizando vários concertos. Após a mudança do Hermeto para o Rio, eu decidi estudar música mais profundamente e procurei meu tio Koellreutter, que me orientou a fazer os cursos de harmonia e contraponto com Mario Ficarelli e de composição e análise com ele mesmo. Nessa época, também passei a fazer aulas de composição na ECA (Escola de Comunicações e Artes), da USP, como ouvinte, com Willy Correa de Oliveira e de piano, com Caio Pagano. Os estudos com o Koellreutter duraram alguns anos, até que minha inclinação para fazer uma música que incluísse a improvisação jazzística, fruto da minha rica experiência com Hermeto Paschoal, acabou por nos distanciar, embora continuássemos a manter contato até seu falecimento.

O que os estudos de piano acrescentaram em sua formação?

O piano é um instrumento completo, que contém toda a orquestra e é fundamental para o exercício de composição e arranjo, mas é também considerado um instrumento de percussão, embora poucos o saibam. Talvez por ter tido uma formação musical diferenciada, um tanto caótica do ponto de vista formal, e por força da minha própria personalidade inquieta e curiosa, encontrei na percussão a possibilidade de explorar um universo infindável de timbres e ritmos, inspirado pela liberdade criativa de percussionistas brasileiros que estavam fazendo música nos Estados Unidos com a nata do jazz, como Airto Moreira, que integrou a banda do Miles Davis e o Weather Report, de Joe Zawinul e Wayne Shorter. E Naná Vasconcelos, que conheci em Nova York, em 1980, assim como Doum Romão, Paulinho da Costa, Alyrio Lima e outros.

Qual a razão de defender a ideia de que temos uma percussão brasileira?

Essa ideia carece de defesa, pois nós temos um dos maiores mananciais de ritmos e instrumentos de percussão do planeta. Além de uma fonte inesgotável de recursos melódicos e uma variedade incrível de manifestações populares. Por conta disso, os percussionistas brasileiros são referência no mundo todo, tendo influenciado não apenas o jazz progressivo, mas até o flamenco, que teve o ‘cajon’ peruano a ele incorporado pelo percussionista baiano Rubem Dantas, curiosamente também pianista de origem, que convidado a tocar com Paco de Lucia, acabou por fazer com que o instrumento passasse a fazer parte dessa música tão tradicionalmente espanhola.

Dos artistas com quem dividiu o palco, de quais guarda as melhores lembranças?

Tive a sorte de tocar com grandes músicos, como Milton Nascimento, Marlui Miranda, Joyce, Paulo Moura, John Scofield, Naná Vasconcelos (com quem gravei o cd Sementeira), Nelson Ayres e John Surman(com os quais gravei o cd Fala de Bicho, Fala de Gente, de Marlui Miranda), o quarteto de cordas Turtle Island (que gravou comigo o cd Porta do Templo), o violinista Tracy Silverman (que participava do Turtle Island e se tornou um grande parceiro no cd North Meets South) e de fazer vários concertos com a Orquestra Jazz Sinfônica e a Orquestra Sinfônica de Curitiba. Mas o que deixou as marcas mais indeléveis em mim foi, sem dúvida, o Hermeto, um dos maiores músicos do mundo, pois me fez abordar a música com muita liberdade e, ao mesmo tempo, em profundidade, na sua incansável busca de aperfeiçoamento e excelência.

Como foi a experiência de fazer arranjos para a Orquestra Jazz Sinfônica, alguns anos atrás?

Foi uma grande oportunidade de experimentar a escrita sinfônica e poder ouvir o resultado, coisa muito rara no nosso país. O estudo de orquestração apenas se concretiza plenamente quando escrita e execução se sucedem, enriquecendo e solidificando seus conhecimentos teóricos. Tive o grande prazer de compor peças originais e interpretá-las como solista junto à Orquestra Jazz Sinfônica e também junto à Orquestra Sinfônica de Curitiba.

E de ter integrado a Orquestra Popular de Câmara?

O período de existência da Orquestra Popular de Câmara foi enriquecedor para todos que dela participaram, envolvendo a gravação de dois cds e uma grande turnê pela Europa, em 2003. Composta por excelentes instrumentistas e grandes amigos, pudemos ali experimentar novas formas de arranjos e improvisação, numa instrumentação pouco usual, que utilizava piano, contrabaixo, viola caipira, sanfona, três sopros: flauta/sax, flauta/sax e clarinete, quatro percussionistas e uma voz feminina usada como instrumento. Tive o prazer de ter minha composição escrita especialmente para a orquestra, chamada Malunga, escolhida para compor um sampler lançado anualmente por um pool de festivais europeus.

Qual o espaço de divulgação da música em tempos de mídias digitais?

Esse espaço é enorme e facilita em muito a divulgação dos trabalhos musicais, pois é geralmente gratuito e atinge todos os recantos do globo. A questão é que há uma avalanche de publicações sem nenhuma seleção prévia, o que faz com que o ouvinte tenha o imenso trabalho de filtrar as obras que realmente interessam em termos de qualidade. As produções que tem mais verba para fazer os impulsionamentos pagos e também a compra de ‘likes’ e seguidores robóticos, acabam por conseguir fazer suas músicas deslancharem e, por vezes, se alçarem à posição de grandes artistas, muitas vezes sem a necessária qualificação. Ou seja, vivemos a era da fama imediata para os que conseguem a façanha de alcançar um número de seguidores e de visitas ou ‘likes’ que os colocam nesse privilegiado, porém nem sempre merecido, reconhecimento.

No Brasil, é possível sobreviver fazendo música instrumental? Em mais de quatro décadas de carreira, que momentos destaca como mais significativos?

A sobrevivência do artista sempre foi uma batalha difícil, inconstante e instável. No caso dos músicos brasileiros, reconhecidos em todo o planeta, a saída muitas vezes tem sido o aeroporto mesmo. O nosso país, infelizmente, não apoia devidamente a arte local, fazendo com que o público também não o faça. Temos um imenso trabalho de educação pela frente e o que vemos acontecer são mudanças constantes na política cultural, que variam de grau e de eficácia de acordo com interesses puramente eleitoreiros, o que acaba mais por confundir do que esclarecer a situação das coisas.

Projetos futuros em pauta?

Sempre tenho novos projetos à frente, porque é assim que deve ser. Tenho a inquietude de ser um compositor, arranjador, percussionista e produtor. Gosto dessa variedade de demandas que, além de me alimentarem o espírito, também me ajudam na sobrevivência. Posso dizer que tenho me dedicado mais a compor trilhas para audiovisuais e, principalmente, projetos que envolvem arranjos para quarteto de cordas e orquestra.

Sobre oa autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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