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Saudades de outros tempos

E como criança, lembro-me também da Adelaide, de me ter puxado para a corte onde outrora moraram dois porcos o tempo suficiente para depois serem transformados em rojões, chouriços e salpicões, costeletas grelhadas e outras delícias (…)

Esperei que o meu pai virasse costas à gaveta do dinheiro e sorrateiramente aproximei-me dela, sabendo bem no meu íntimo que estava prestes a cometer um delito que representava perigo para o meu corpo uma vez que, se fosse apanhado na ratada, levava tarei na certa.

O perigo da situação, tendo eu apenas cerca de sete anos de idade, de certa maneira provocava-me uma adrenalina que me pareceu valer a pena o risco que corria, pela aventura que vibrava dentro de mim.

Fui apanhado, e levei a tal tareia.

Tareia de criar bicho, diria o tio Zé de Lisboa. Livre de qualquer imposto, livre também de restrições e medos de que a linha de ajuda a crianças maltratadas, pudesse interferir. Livre de leis protetoras sempre tão difíceis de estabelecerem uma diferença entre abuso e violência e a necessidade imperial de educar.

Cometi um crime aos sete anos de idade, roubei da gaveta do estabelecimento comercial do meu pai, cinco tostões, e ele achou que uma tareia seria a lição adequada para que eu, depois disso, atirando-me a mim mesmo para um canto onde pudesse roer a minha dor e exteriorizar a minha raiva sem que pudesse ser observado, na eventualidade de levar mais umas cinturadas, pelo abuso, mesmo na minha choradeira pudesse refletir no que tinha feito e nas consequências de deitar a mão ao que não me pertencia.

E nem sequer faço ideia para que queria eu o raio dos cinco tostões. Nessa época, com eles podia comprar alguns rebuçados, que com a idade que tinha e a dificuldade que havia em ser presenteado pela guloseima a não ser em ocasiões de algum cariz especial, eram sempre tão desejados. Mas comprar aonde se no lugar só havia a mercearia do meu pai e uma outra onde eu não estava autorizado a entrar.

Sujar a cara com lama, arrepiar o cabelo, virar a camisola do avesso, tentar disfarçar a voz numa atitude de bandido do Oeste e atrevidamente vir à loja do meu pai e cheio de coragem atirar-lhe com a moeda para cima do balcão e de sorriso meio aparvalhado, exclamar, “- Ó senhor António, transforme-me essa moeda em rebuçados por favor,”

Lá ousado seria o ato, mas corria os mesmos riscos do tipo que saiu da sapataria numa destreza bem estudada, com um par de sapatos novos, deixando lá os velhos e voltando no dia seguinte para reclamar com o dono da sapataria porque os sapatos novos afinal, “aleijam”.

Não sei para que queria eu os cinco tostões. Apenas agi como uma criança que se não for disciplinada está sempre a fazer travessuras.

E nem sequer a tareia tinha sido assim tão agressiva. Era apenas a minha condição de criança de sete anos de idade, o meu pai que nessa altura me parecia muito mais grande do que realmente era, a sua cara de zangado em relação à minha desobediência, que não era assim tão furiosa quanto eu pensava, até porque ainda eu a contas com a minha choradeira, a sentir o cinto no corpo, que me parecia lá ter ficado mesmo depois de ter regressado às presilhas das suas calças, e ele, a roer uma maçã como se a tareia nunca tivesse acontecido, não tivesse a mesma importância que eu lhe dava.

Nem sequer lembro essa tareia com alguma mágoa. Lembro-a com o mesmo carinho com que lembro o cheiro das minhas brincadeiras de menino , que eram feitas a maior parte das vezes na terra, nos montes, nas cabanas, com os amigos que cresceram e se moveram em direções diferentes, aliás, todos no dispersamos em direções diferentes dos nossos sonhos dessa altura, dos projetos que fazíamos enquanto transportávamos os ramos das árvores para construir a nossa cabana, e nem sequer sabíamos que as conversas que tínhamos nessa azáfama que nos mantinha unidos, vivos para o mundo e a natureza a quem pertencemos, eram chamados projetos para o futuro. Talvez por isso os tivéssemos deixado para trás, junto com as paredes da cabana, do cheiro dos ramos das árvores, das nossas brincadeiras que hoje, se fechar os olhos, se pensar nelas a fundo, ainda consigo trazer de volta a cara alegre e inocente dos meus amigos, os cheiros desses tempos, as emoções que agora me andam às voltas na barriga e me dão esta sensação morna no peito, porque penso nelas, porque as sinto.

Lembro-me dos banhos que eu e os meus amigos dávamos nas poças que havia nos campos, onde nos chafurdávamos entre a água e a lama que levantávamos do fundo dessas poças quando nos atirávamos para dentro delas, mostrando habilidades com saltos acrobáticos e que na altura nos pareciam quase atrevidos, provocadores, desafiadores. Até as rãs fugiam com medo de tanta algazarra, tantos gritos de alegria, risos felizes.

Tomávamos banho nus, sem nos preocuparmos a mínima para o pirilau que andava ali a saltar connosco, abanando com a mesma intensidade com que saltávamos e corríamos para dentro da água suja de lama, destemidos de possíveis infeções, doenças que poderiam advir dos micróbios e outros pequenos seres que não podem ser vistos a olho nu, tão nu como nós estávamos naquele momento, despreocupados em comparar tamanhos ou volumes, vendo o pirilau como víamos qualquer outra parte do nosso corpo. Somos feitos assim e já está. Não temos tempo para essas parvoíces, essas comparações. Estávamos contentes com os tamanhos e no fundo, uma inocência quase inconsciente nos dizia que lá chegaria a altura de nos preocuparmos com outras ninharias quando fosse tempo disso.

No fim da algazarra, dos muitos saltos para a água que agora sim, tinha cor, acastanhada, corríamos nus e bastava uma volta completa à roda do campo que nos encobria com as suas altíssimas espigas de milho, mais altas do que qualquer um de nós, e quando chegávamos perto da poça já vínhamos secos, prontos para vestir de novo a roupa que deixávamos abandonada por cima das silvas que rodeavam a poça.

Nessa altura matei e morri tantas vezes. Fui cowboy do oeste, fui índio das Américas, tive pistolas feitas do ramo de uma árvore, um ramo mais torto e que trabalhado se transformava numa pistola eficaz, que matava com a mesma destreza com que o morto se levantava uns segundos depois para se queixar que só tinha sido atingido de lado e que não era justo se dizer que o tinham morto, mesmo que quem disparou o tiro afirmasse a pés juntos que não, que o tinha atingido em cheio, que não tinha hipótese, levou o balázio e pronto, “tás morto”.

Lembro-me dos clientes da tasca do meu pai, que passavam tardes sentados numa mesa segurando uma caneca de barro, branca, daquelas que hoje seriam uma relíquia porque representavam um modo de vida de um passado que não volta. Lembro-me desses clientes que sempre me pareceram velhotes simpáticos, de samarras pelas costas, alguns de bengalas pousadas alinhadamente ao seu lado enquanto eles deixavam as marcas dos seus lábios gravadas nas bordas das canecas com vinho tinto. Era quase sempre vinho tinto. E falavam, falavam de assuntos que eu não compreendia, mas diziam também coisas engraçadas e que me faziam rir, muito embora a maior parte das vezes eu ria porque todo o mundo ria também, mesmo que eu não soubesse muito bem porquê. Uma vez por mês traziam a esposa e os filhos, e enquanto eles ficavam do lado do tasco a marcarem os lábios nas bordas da caneca com o vinho tinto, as mulheres faziam a despesa do mês, no lado da mereceria, queixando-se a maior parte das vezes à minha mãe, de coisas a que eu ouvia por acaso, mas não dava importância porque também não me interessava saber os problemas dos adultos. Ainda bem que eu iria ficar criança para sempre.

E como criança, lembro-me também da Adelaide, de me ter puxado para a corte onde outrora moraram dois porcos o tempo suficiente para depois serem transformados em rojões, chouriços e salpicões, costeletas grelhadas e outras delícias que os velhotes das samarras saboreavam acompanhando as iguarias com o vinho tinto, quase sempre o vinho tinto, ou pelo menos a memória que dele me ficou gravada por ser tão vivo como o sangue que me corre nas faces, no corpo inquieto, ao lembrar tudo isto, e a Adelaide a levar-me pela mão para dentro da corte, agora repleta de feno, à espera dos novos inquilinos que haveriam de chegar em breve, e num gesto atrevido a baixar as cuecas e a dizer-me para eu olhar. E eu, ciente da malandrice, mas sem saber o que fazer com ela, ela a Adelaide e ela a malandrice, olhei, admirado, a tentar achar as diferenças entre a ranhura dela e do meu porquinho onde às vezes metia uma moeda de um tostão, cinco tostões se o meu pai não me apanhasse na ratada. Que outras moedas haveriam de entrar na ranhura da Adelaide, atrevida como era. E eu olhei, e ela, dois anos mais velha do que eu, eu com oito, pegou-me na mão e passou-a na ranhura que me pareceu tão macia quanto a ranhura do porquinho onde eu metia uma moeda de longe a longe, muito embora a ranhura da Adelaide fosse mais quente do que a ranhura do porquinho de barro, sempre fria, mas lisa.

Lembro-me da Fatinha que andara cerca de cinco anos na primeira classe, porque tinha problemas de aprendizagem, mas que tinha um coração de oiro e que via o mundo com a mesma inocência que eu aos oito anos de idade, um rapazinho curioso e confuso, vi a ranhura da Adelaide, a tentar achar as diferenças que ela tinha com a ranhura do meu porquinho das moedas, as duas lisas e uma, quente, e a outra fria, a um toque do qual eu quase tinha medo de experimentar.

Lembro-me das noites em que os pais da Fatinha vinham para ver na única televisão que nessa época existia nas redondezas, no estabelecimento comercial dos meus pais, o festival da canção, Nicolau no país das maravilhas, E o resto são cantigas, bem como as comemorações das aparições de Fátima, e alguns jogos do Benfica. E ela trazia consigo o caderno da escola para perguntar ao meu pai, coisas simples como o resultado de 4 + 4. E com paciência, o meu pai lá tirava a caneta da orelha, puxava de uma folha de uma resma de papel que sempre mantinha em cima do balcão para embrulhar colorau, nuns cartuchinhos que fazia com habilidade de dedos, ou para embrulhar barras de sabão rosa, e na folha rasgada à resma, desenhava quatro tracinhos mais quatro e pedia à Fatinha que os contasse, mas ela perdia-se na contagem com a mesma facilidade com que desviava a atenção para as piadas de Nicolau Breyner, ou no caso do “E o resto são cantigas”, Raul Solnado. Começar bem, começava ela, mas assim que chegava ao dois, passava para o seis, e voltava ao três, para ir a um nove que nem sequer existia. E com paciência o meu pai lá atentava a outros truques que pudessem funcionar melhor para a sua compreensão que era lenta, mas os resultados eram sempre os mesmos, até que se contentasse com uma primeira classe que nunca chegou a completar. Mas reconhecia o esforço do meu pai, e nos seus quinze ou dezasseis anos de idade onde a mesma inocência dos meus oito anos de idade, confuso entre ranhuras e as suas diferenças e texturas, havia ficado, dizia…” -Vês pai, o senhor António é que sabe explicar bem. Tu só gaguejas…” E depois havia uma risada geral, mas por muito difícil que seja de entender, não era uma risada de gozo, de malvadez. Era uma risada que integrava toda esta gente numa mesma família, num mesmo respeito, onde os velhotes que eu achava simpáticos e que vestiam samarras no inverno, tinham bengalas de pau bem envernizadas e deixavam a marca dos seus lábios nas bordas da caneca onde bebiam vinho tinto, quase sempre o vinho tinto, e de cada vez que cumprimentavam alguém, tiravam respeitosamente o chapéu ou o boné e faziam uma ligeira vénia com a cabeça.

Lembro-me da Tia Ana da Água Nova, que para mim, tinha mais conhecimentos das minhas mazelas do que tinham os médicos do posto médico onde eu detestava ir porque os associava a injeções, a feições frias e pouco amigáveis, indiferentes aos meus medos, e sempre cheios de pressa. “Vá, toca a virar o rabo que isto não custa nada”. E a tia Ana resolvia muitos dos meus problemas com chás e xaropes. Lembro-me que me salvou de morrer agoniado com uma dor de barriga que era tão forte como o medo que eu tinha de não escapar com vida daqueles sinais de que a matéria de que somos feitos vem cheia de falhas e defeitos de fabrico. “Vou morrer?” E só perguntei porque a dor de alguma maneira me parecia forte de mais para a minha tenra idade. E a tia Ana, debruçando-se sobre o leito da minha cama e com a sua mão macia e cheia de ternura a segredar-me, para me sossegar, “Não vais nada. A tia resolve o problema”, ao mesmo tempo que me esfregava a barriga em movimentos circulares e precisos, e eu aos poucos a deixar-me levar pelo sono que se ia chegando de maneira tão suave como suaves eram as suas mãos e os seus movimentos circulares na minha barriga, que me iam aliviando as dores, até que eu confortavelmente aliviado, me deixava envolver pelo sono, não sem antes pensar, talvez de sorriso nas faces, que a tia Ana sabia bem mais de dores de barriga e outras pequenas mazelas do que qualquer um desses médicos que me assustavam.

Lembro-me de tudo isto e do muito mais que não escrevo… e tenho saudades. Tenho muitas saudades.

António Magalhães

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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