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“O rapaz do caixote de madeira” de Leon Leyson

Ficha técnica

Título – O rapaz do caixote de madeira

Autor – Leon Leyson

Editora – Editorial Presença

Páginas – 188

Opinião

Quem salva uma vida salva o mundo inteiro” (inscrição extraída do Talmude)

Vi pela primeira vez o filme A lista de Schindler há mais de vinte anos e não consigo recordá-lo sem que as lágrimas me marejem os olhos e sem que um nó se instale na minha garganta. São mais de três horas de película a preto e branco sobre “(…) Oskar Schindler, esse homem complexo e cheio de contradições – oportunista nazi, intrigante, corajoso, rebelde, salvador, herói – [que salvou] cerca de mil e duzentos nazis de uma morte quase certa.” (pág. 132). São mais de três horas que nos ferem e nos torturam, que me fizeram morder os lábios, os dedos, as mãos, que me deixaram sem reação, atónita e completamente exaurida. Creio que poucos filmes tiveram em mim o efeito que A lista de Schindler teve, talvez porque Spielberg foi brilhante ao transpor para a sétima arte um retrato cru e sem filtros do que foi o Holocausto, o extermínio do povo judeu nas mãos dos nazis e um lampejo de esperança e de humanidade de alguém que, mesmo estando no lado do inimigo, “(…) pode levantar-se contra o mal e fazer a diferença.” (pág. 162)

Leib Lejson (conhecido mais tarde como Leon Leyson) era o número 289 da lista de Schindler. Uma lista onde figuravam os judeus que deixariam de estar no “inferno de Plaszów” (campo de trabalho às portas de Cracóvia) e ingressariam num subcampo adjacente às instalações da fábrica Emalia, pertencente a Oskar Schindler. À força de persuasão e subornos a compatriotas nazis, o empresário convencera-os de que era do interesse do partido e da guerra que os trabalhadores vivessem paredes meias com a fábrica e não tivessem que percorrer duas vezes a distância considerável que separava a fábrica de Plaszów. Arriscando a sua própria vida, o único nazi que conheço que está sepultado em território israelita tratou “os seus judeus” como seres humanos, empregou um rapazinho franzino e débil, que tinha que empoleirar-se num caixote de madeira virado ao contrário para poder manobrar os comandos da máquina, deu-lhe uma ração suplementar e tudo fez para que não se visse separado dos seus familiares e para que não perdesse a vida nas mãos dos seus congéneres do partido. Arrancou-os do campo de Plaszów, do campo de Auschwitz e só os abandonou quando a guerra já estava perdida para os alemães e corria perigo de ser capturado pelos soviéticos. Mas “Não conseguiu partir sem se despedir, e reuniu os seus judeus uma última vez.” (pág. 131) Deixou-os livres. Deixou-os vivos.

Leon Leyson confessa no epílogo desta obra que reúne as suas memórias que o filme A lista de Schindler mudou a sua vida, que até ao momento do seu lançamento permanecera em silêncio acerca do seu passado, mas que a adaptação cinematográfica de algo tão intimamente ligado a si, ao seu passado e ao da sua família, o fez quebrar esse silêncio e partilhar a sua vida, a sua experiência traumatizante como criança judia sobrevivente do Holocausto com todos aqueles que o quisessem ouvir. Fê-lo inúmeras vezes, para distintos públicos e sem nunca preparar o que iria dizer e relembrar.

Dessa partilha resultou este livrinho que me tocou profundamente, que me fez recordar imagens do filme de Spielberg e o quanto as mesmas me violentaram e que me obrigou a engolir a vergonha que sempre sinto quando me deparo com o facto de que o Homem, um ser racional, tem comportamentos indignos, desprezíveis e infinitamente piores do que os dos animais. Essa partilha transportou-me ainda para o país onde as garras exterminadoras do ideal ariano deixaram marcas mais nefastas. Estive na aldeia natal de Leon e sobretudo na cidade de Cracóvia, na qual o nosso protagonista viveu em tempos de paz e em tempos de inferno. Percorri ao seu lado as ruas dessa cidade histórica, senti como se fosse meu o deslumbramento de Leon perante os testemunhos da sua riqueza medieval e acima de tudo encolhi-me de dor, de compaixão e de revolta quando tudo aquilo que ele foi descobrindo nas suas deambulações pelos recantos de Cracóvia lhe foi vedado por muros de mais de três metros e que o mantinham cativeiro num gueto desumano e aterrador.

Nenhuma leitura que aborde o Holocausto me deixa indiferente. Não poderia deixar. Mas quando as mesmas são de testemunhos verídicos, a repulsa, o tolhimento e a vergonha atormentam-se por muito mais tempo. Fazem-me questionar tudo e todos, inclusive a mim. Há uma parte nas memórias de Leon que me abanou de forma muito intensa. É a que se refere à sua saída do gueto para o campo de Plaszów – “… fiquei atónito ao verificar que a vida parecia igual ao que era antes. Era como se eu estivesse num túnel do tempo… ou como se o gueto ficasse noutro planeta. Pasmei para as pessoas limpas e bem vestidas, atarefadas de um lado para o outro. Pareciam tão normais, tão felizes… Não saberiam o que nós tínhamos sofrido, a uns escassos quarteirões de distância? Como poderiam não saber? (…) Que a nossa miséria, o nosso confinamento e a nossa dor fossem irrelevantes para as suas vidas era simplesmente incompreensível.” (págs. 92, 93) Os gentios polacos tinham continuado com as suas vidas, mesmo com um gueto dentro de portas. Optaram por fechar os olhos e ignorar que a fome, as condições desumanas, as deportações e uma máquina hedionda estavam a dizimar homens, mulheres e crianças apenas porque professavam uma religião diferente. É óbvio que nem todos viraram a cara. É óbvio que muitos ajudaram como puderam aqueles que até ao dia 1 de setembro de 1939 haviam sido seus vizinhos. Mas a grande maioria baixou a cabeça e preferiu ignorar, não saber. Deixou-se tolher pelo medo e pelo instinto de sobrevivência. E aqui me pergunto? Será que eu, se me visse em pleno palco de uma guerra de proporções mundiais, a poucos metros de um cenário de matança desenfreada e injustificável, me encolheria, olharia para o outro lado ou me levantaria contra o mal e tentaria fazer a diferença? Quero acreditar que seria forte e audaz como o foi Oskar Schindler ou tantos e tantos anónimos alemães, polacos, austríacos, holandeses, belgas ou franceses, mas… seria capaz? É por isso que os olho a todos e, neste caso, a Schindler como um herói, um ser extraordinário que sempre merecerá a minha total admiração. E é também por isso que sigo com a minha obsessão, que procuro de forma quase doentia narrativas totalmente verídicas ou baseadas em factos verídicos sobre as Grandes Guerras ou sobre a Guerra Civil Espanhola. Porque as mesmas são um ensinamento, são lições que nunca deveremos esquecer e são testemunhos do pior e do melhor que nos compõem como seres humanos.

Leon Leyson faleceu no início de 2013, um dia depois de entregar o manuscrito final deste livro à editora. Havia cumprido a sua missão. A mim só me resta agradecer-lhe a partilha. Tornou-me mais rica, um ser melhor. Como leitora, continuo a sua missão e peço-vos que façam o mesmo que eu. Não deixem que o mundo se esqueça de Leon ou de Oskar Schindler. Por favor.

Com esta leitura participo no desafio literário do Goodreads Leituras do Holcausto III. Obrigada, Isa!

NOTA – 10/10

Sinopse

Leon Leyson tinha apenas dez anos quando os nazis invadiram a Polónia em 1939 e a sua família foi forçada a viver no gueto de Cracóvia. Neste seu livro de memórias, Leon começa por nos descrever uma infância feliz, na sua aldeia natal e felizmente para a família, o seu caminho cruzar-se-ia com o de Oskar Schindler que os incluiu na célebre lista dos trabalhadores da sua fábrica. Na altura com apenas 13 anos, Leon era tão pequeno que tinha de subir para cima de um caixote de madeira para chegar aos comandos das máquinas. Ao longo desta história, que reproduz com autenticidade o ponto de vista de uma criança, Leon Leyson deixa-nos entrever, no meio do horror que todos os dias enfrentavam, a coragem, a astúcia e o amor que foram necessários para poderem sobreviver.

in O sabor dos meus livros

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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