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O senhor Santos e os rapazes: o fim da saga

Depois do jogo…

O sr. Sousa, presidente da junta de freguesia da Lusitânia, desapertou o botão do colarinho, alargou desajeitadamente a gravata, apoiou as mãos nos rins afastando as abas do casaco para trás, para logo de seguida elevar a mão direita por cima dos olhos em forma de pala protetora do sol, e de olhos semicerrados espreitou para o fim da reta de acesso à aldeia, visivelmente ansioso pela chegada do senhor Santos e os rapazes.

Por trás de si uma pequena multidão de alguns reumáticos e outros velhos que com as dificuldades de deslocação devido à idade e as mazelas a ela associada, bem como alguns miúdos, não puderam acompanhar a equipa ao jogo com a Província da Cisplatina, todos vestidos com roupas domingueiras, lavados, barbeados, bem penteados e a cheirar a fresco, esperavam com a mesma ansiedade do senhor presidente da junta, pela equipa.

Finalmente, a emergir da linha do horizonte, uma espécie de bola começou a ganhar forma à medida que ia crescendo, envolta numa nuvem transparente e ebuliente, formada pelo imenso calor que se fazia sentir. À medida que a espécie de bola avançava furando a nuvem ebuliente, começavam-se a definir os contornos da carrinha de caixa-aberta do senhor Ilídio, como se a mesma surgisse de uma outra dimensão desconhecida.

– São eles – disse o senhor presidente Sousa ainda com uma mão apoiada num rim e a outra a fazer de pala protetora aos olhos que o sol fulminante teimosamente quase cegava.

Depois, a carrinha voltou a desaparecer no desnível da estrada à medida que as motocicletas e os atrelados que faziam parte da caravana de apoio à equipa dos Lusitanos, iam mergulhando no mesmo poço para surgirem segundos depois ao nível da estrada, primeiro o tejadilho da carrinha e logo de seguida a emergir o vidro da frente, o capot, a grelha e os faróis e finalmente as rodas apoiadas no alcatrão quente.

Nos três lugares da frente, da carrinha de caixa-aberta, o senhor Ilídio com a mão direita no volante e o antebraço entalado na janela completamente escaqueirada, firme entre o cotovelo na parte de baixo da janela e o gancho formado pelo polegar e indicador, na parte de cima, numa posição estratégica que lhe trouxesse o ar formado pelo andamento da carrinha, ainda que quente, em direção ao seu peito e cara. No assento do meio, com a testa gotejada de suor e as faces rubras do calor, o Sr. João Costa, e no lado do passageiro o Sr. Santos, três botões da camisa desabotoados, nó da gravata solto e desajeitado, mangas arregaçadas e o casaco dobrado ao meio, com o interior virado para fora, e entalado entre os joelhos.

Atrás, na caixa-aberta, os rapazes protegidos do sol por dois enormes guarda-sóis que o Sr. Justino e o sr. Ricardo, seguravam nas mãos.

A tristeza que todos quantos viajavam naquela carrinha, traziam estampada no rosto, via-se pesava-se e media-se pelo barulho do silêncio que se havia abatido nos rostos de cada um deles. Os rapazes tinham os olhos vidrados por lágrimas que lhes ficaram a boiar no glóbulo ocular por as reterem teimosamente para que não expusessem a tristeza e a desilusão que sentiam, flagrantemente.

Assim que a carrinha se aproximou da entrada da aldeia, o sr. Sousa à medida que acenava com a mão a todos os ocupantes do veículo, inclinou o pescoço para o lado e entre dentes gritou, – Ó Vitorino, podes começar…

O Sr. Vitorino inclinou as costas cerca de 45 graus para trás para ganhar equilíbrio com a barriga que mais parecia um dos bombos da banda filarmónica que dirigia, passou os polegares pelos suspensórios, de baixo para cima, esticou-os pouco acima do peito para os largar logo de seguida, aguentando firme a sapatada elástica dos mesmos, esticou os braços, deixou-os suspensos acima da cabeça por uns escassos segundos e repentinamente começou a movê-los para cima e para baixo, dirigindo a Banda Filarmónica da aldeia da Lusitânia, que ao comando do seu maestro fez ouvir os trombones, o bombo, os pratos, as flautas e outros instrumentos, numa alegre musica de boas vindas ao Sr. Santos, aos seus colaboradores e aos rapazes.

Muito depressa as motocicletas e os atrelados foram estacionados e os apoiantes juntaram-se à festa de boas vindas ao senhor Santos e aos rapazes.

O senhor Sousa,

”Bem-vindos de regresso à aldeia e obrigados pelas alegrias que nos têm dado. Vocês continuam a ser os maiores…”

Os rapazes ficaram surpreendidos. Debruçaram-se sobre os taipais da carrinha com o queixo apoiado nas costas da mão e pela primeira vez depois do jogo, sorriram.

O Sr. Vitorino, que mandara a banda parar de tocar por uns minutos enquanto o senhor presidente da junta fez o seu pequeno discurso de boas-vindas, voltou a erguer os braços acima do nível da cabeça e a banda desatou a tocar animadamente prosseguindo com a festa. Alguém, entusiasmadíssimo gritou, “Vamos é comer e buber…”

Antes do jogo…

O Sr. Santos abriu as cortinas de par em par, logo de seguida as janelas, e um feixe de luz entrou pelo quarto adentro assim que empurrou com cuidado as persianas de madeira, invadindo-o numa claridade de quase cegar os olhos. Logo que as persianas de madeira estranhamente colocadas do lado de fora da janela, ficaram escaqueiradas, quase coladas contra a parede exterior, o Sr. Santos esfregou os olhos, espreguiçou-se e bocejou ao mesmo tempo. Assim que os olhos ainda meio turvados pelo esfregar, começaram a voltar ao normal, o Sr. Santos apoiou as mãos no peitoril da janela e ficou especado a olhar a rua.

Mesmo à sua frente, os rapazes alinhados, qual pelotão de fuzilamento, com a diferença de que as armas que tinham consigo, eram os sorrisos cintilantes e o ar feliz com que, de sapatilhas novas e equipamento novos, olhavam o Sr. Santos. Não falaram, apenas baixaram os olhos orgulhosa e vaidosamente sobre si mesmos num convite ao seu treinador, para que apreciasse a rapaziada.

Por momentos o Sr. Santos ficou especado a olhá-los, mas logo de seguida largou um sorriso tão feliz quanto o deles e disse, “Tão vaidosos…sim sanhora, estão muito bonitos.

Eles acusaram a felicidade abrindo os pés em leque e acenando com eles para que destacassem as sapatilhas novas.

-Vá, vão andando para o campo de treinos que eu já lá vou ter.

O senhor Santos estava um pouco nervoso nesse dia. Sabia que os rapazes da Província da Cisplatina eram uns matulões cheios de força e habilidade, por isso, antes de ir para o campo de treinos ter com os rapazes, passou pela igreja da aldeia. Fez as suas habituais orações e antes de se levantar, ferverosamente pediu ao pai que lhe desse um sinal da sua alegria com ele, independentemente de ganhar ou perder o jogo. Depois saiu da igreja e foi ter com os miúdos.

O jogo…

Foi um jogo e peras. O melhor que os rapazes haviam feito durante o torneio. Mas infelizmente perderam por 2 a 1. A vontade e determinação com que entraram dentro de campo acabou por não se fazer sentir no resultado. Mas dominaram a bola, e tentaram por todos os meios furar um muro de betão que toda a equipa da Cisplatina armou na sua defesa. O Cristiano antes do começo da segunda parte, chamou os rapazes num círculo de união, abraçaram-se, baixaram as cabeças e disse-lhes. “Já ganhamos uma churrascada no quintal do senhor Santos, já merecemos uma semana de chocolates e rebuçados da mercearia do senhor Ilídio, já ganhamos sapatilhas e equipamentos novos, mas agora temos de dar uma alegria ainda maior aos nossos conterrâneos. Vamos lutar até ao último fôlego.” E assim fizeram. Mas a sorte, não estava do lado deles.

Depois da festa…

O senhor Sousa encerrou a festa com um discurso final. Disse,

“Senhor Santos, seus colaboradores, rapaziada, vocês deram-nos um orgulho muito grande, pela vossa paixão, pelo vosso trabalho árduo e pela vossa dedicação. Não fomos mais longe…? Nem sempre se ganha na vida. Mas quando se perde, perde-se com dignidade, e quando se perde, não porque não fomos os melhores, mas porque tivemos menos sorte, consola-nos o facto de termos lutado até ao fim, sem nunca baixar os braços, sem nunca desistir. E isso, foi a vossa grande vitoria. Com essa atitude, sabemos todos, que muitas alegrias se irão juntar às que já nos destes até agora. Bem hajam…

Verteram-se algumas lágrimas, mas também houve palmas não só para o discurso do Sr. Sousa, bem como para toda a equipa que subiu ao coreto da música para receber um caloroso aplauso dos habitantes da aldeia da Lusitânia.

Antes de se dirigir para casa, o Sr. Santos passou pela igreja que estava completamente vazia. Ajoelhou-se em frente do altar e por ali ficou por algum tempo nas suas orações. Quando se levantou, ao virar-se para trás, deu de caras com um homem que se sentava num dos bancos da frente. Era um velho simpático, segurando uma bengala onde tinha as mãos apoiadas. Sorriu-lhe e foi-se sentar ao seu lado. O velho disse,

-Desculpe se o assustei…não era minha intenção.

O senhor Santos,

-Não, não, eu é que não me apercebi de ter entrado. Quando vim a igreja estava sem ninguém…

E dito isto sentou-se ao lado do velho e desenrolaram uma conversa animadora. O senhor Santos estava triste por ter saído do torneio mais cedo. Sabia que os seus rapazes tinham capacidades para ir mais longe. O velho,

– Sabe senhor Santos, na vida perde-se e ganha-se. Num e noutro caso é preciso ter dignidade para saber lidar com a situação. E eu acho que o senhor e os seus rapazes sabem isso. Por isso, não deve ficar triste porque embora perdendo, o que importa é que nunca desistiu e acreditou até ao último momento. Isso não lhe deu a vitória neste jogo, mas de certeza lhe trará a si e aos seus rapazes, muitas vitórias no futuro.

Depois o velho, vagarosamente levantou-se, acenou com a cabeça ao senhor Santos e disse,

– Foi um prazer conhecê-lo.

Agarrado à sua bengala começou a descer a igreja, mas a certo momento parou, virou-se para trás e disse,

– Senhor Santos, não é? Olhe, nem por acaso… encontrei algo que se calhar lhe pertence.

O Sr. Santos ficou a olhar para ele curioso para saber o que teria o velho que lhe pudesse pertencer.

Sem mais delongas o velho tirou do bolso do casaco uma esferográfica Parker em aço inoxidável, preta, com o nome do senhor Santos gravado a branco. Estendeu-lha e disse,

-Penso que isto lhe pertence…

O senhor Santos ficou perplexo, sem palavras. Com as mãos ainda a tremer, pegou na esferográfica e examinou-a. Era de facto a sua esferográfica que havia desaparecido. O pai enviara-lhe o sinal que ele tão ferverosamente lhe havia pedido. Elevou os olhos para o céu imaginário e baixinho disse,

-Obrigado Chico, por estares sempre comigo.

Quando voltou a olhar à sua volta, o velho simplesmente havia desaparecido. Rodou os olhos ávidos por toda a igreja, mas nem sinal do velho. Por momentos ficou de testa franzida, absorto num olhar profundo e meditador. Depois sorriu para si mesmo, enfiou as mãos nos bolsos e foi para casa, junto da família.

(Esta é uma história de ficção. Qualquer relação com factos reais terá sido meramente propositado.)

Senhor Santos – Fernando Santos, treinador

Senhor Ilídio – Ilídio Vale, adjunto

Senhor João Costa – João Carlos Costa, preparador físico

Sr. Justino – Fernando Justino, treinador de guarda-redes

Sr. Ricardo – Ricardo Santos, Observador

Jogadores: Rui Patrício, Pepe, Bruno Alves, José Fonte, Raphael Guerreiro, Cédric Soares, Ricardo Pereira, Adrien Silva, João Moutinho, William de Carvalho, José Mário, André Silva, Cristiano Ronaldo, Bernardo Silva, Gelson Martins, Ricardo Quaresma, Gonçalo Guedes, Manuel Fernandes, Bruno Fernandes, Mário Rui Ruben Dias, Beto, Anthony Lopes.

Sr. Vitorino – Maestro Vitorino de Almeida

Presidente da Junta de freguesia da Lusitânia – Marcelo Rebelo de Sousa

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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